Hume

            David Hume pode, sem qualquer exagero, ser considerado uma das figuras mais controversas da história da filosofia. Isso pode ser atribuído, em parte, às amizades e às inimizades que cultivou. Para certas mentes conservadoras que gozavam de alguma reputação na Grã-Bretanha de seu tempo, ele era “o ateu”, tendo desenvolvido teorias que seriam, para dizer o mínimo, bastante perigosas para a moral religiosa da época. Tinha, por outro lado, amigos franceses que, menos preocupados com qualquer filiação religiosa, atribuíram a ele a alcunha de le bon David, por conta de seu caráter reto e amável.

            Entretanto, é sobretudo por conta de seu pensamento que Hume pode ser considerado um filósofo polêmico. Sua teoria do conhecimento, expressa, pela primeira vez, no Livro I do Tratado da Natureza Humana, obra de juventude, tinha como principal inovação a tese de que não podemos conceber qualquer conexão necessária entre a causa e o efeito. A passagem entre os dois, então, dever-se-ia a um princípio completamente não reflexivo a que Hume denominou hábito. Essa teoria fez com que o autor fosse considerado por muito tempo um cético radical. Mais recentemente, a partir da década de 1940, surgiram interpretações que teriam buscado considerá-lo um naturalista, um pensador para quem interessaria não solapar as bases do conhecimento, mas reconstruí-lo sobre princípios diferentes da razão tal como era concebida por outros pensadores modernos.

            O Tratado da Natureza Humana não era apenas uma obra de epistemologia. Ao Livro I, intitulado “Do Entendimento”, seguiam-se outros dois. No segundo, “Das Paixões”, Hume desenvolveu uma explicação para as emoções humanas que não necessitava de qualquer recurso à metafísica tradicional ou à fisiologia. No Livro III, “Da Moral”, apresentou uma teoria segundo a qual as distinções morais seriam pautadas não pela razão descobridora de relações naturais eternas e imutáveis, mas por um sentimento de aprovação ou de censura. Com isso, assumia posição em um debate extremamente importante para a filosofia das luzes britânicas, aquele sobre os fundamentos da moral. Mais especificamente, o texto de Hume filiava-o à tradição de autores como Shaftesbury e Hutcheson, defensores da ideia de que as distinções morais seriam devidas ao chamado moral sense. Ainda assim, é preciso observar que a teoria de Hume seria diferente daquelas de seus predecessores por não envolver uma concepção metafísica particular da ordem do universo ou uma analogia, em sentido forte, entre o moral sense e sentidos como visão ou audição.

            O Tratado da Natureza Humana, como se sabe, não obteve grande sucesso em seu tempo. Foi propositalmente ignorado por conta dos preconceitos da época. Apenas com obras como os Ensaios Morais, Políticos Literários e a colossal História da Inglaterra é que Hume alcançaria a fama literária a que tanto almejava. De qualquer modo, o projeto que ele havia delineado em sua primeira obra não foi abandonado. Em Uma Investigação sobre o Entendimento Humano e Uma Investigação sobre os Princípios da Moral, ele apresenta novas versões das teorias propostas nos livros I e III do Tratado, respectivamente. Não podemos perder de vista que, apesar de Hume ter afirmado em sua autobiografia que a rejeição ao Tratado teria sido devida mais a forma que ao conteúdo, há diferenças importantes entre as teorias da obra de juventude e essas reformulações posteriores, as quais mostram, por vezes, mudanças de posição em pontos particulares. Já a Dissertação sobre as Paixões, obra em que o autor apresentou novamente a teoria que havia sido exposta no Livro II, não traz inovações, sendo, portanto, um pouco menos relevante.

            A crítica à religião também foi um tema importante para Hume. Na verdade, podemos dizer que esse tópico ganhou vulto progressivamente em sua obra. Isso é algo que afirmamos não apenas porque a Investigação sobre o Entendimento Humano tem duas seções voltadas especificamente para a crítica de temas religiosos, as quais não estavam presentes no Livro I do Tratado. A obra madura de Hume inclui a História Natural da Religião, em que as religiões instituídas são criticadas por conta do prejuízo que teriam trazido à humanidade, e os Diálogos sobre a Religião Natural, publicados postumamente, em que são atacados diversos argumentos em favor da existência de Deus. Além disso, alguns ensaios, como “Do Suicídio” e “Da Imortalidade da Alma” têm conteúdo inegavelmente religioso.

            A filiação de Hume à tradição cética e seus escritos sobre religião tornam fácil compreender ao menos alguns dos motivos pelos quais sua obra teria sido considerada, por assim dizer, escandalosa. Isso não impediu, entretanto, que o autor viesse a ter sua importância reconhecida por pensadores como Kant, que teria sido despertado de seu “sono dogmático” pela leitura do Tratado, ou por filósofos do chamado Círculo de Viena, que teriam nos textos humianos sobre a epistemologia uma de suas influências confessas. De fato, podemos dizer que, atualmente, Hume é mais conhecido por conta de seus textos sobre o conhecimento, já que foram eles que influenciaram de maneira mais direta o pensamento filosófico posterior. Entretanto, isso não deve levar a crer que os outros aspectos de seu pensamento são menos importantes. Certamente é possível que eles tenham interesse para o leitor contemporâneo.


Bibliografia

  1. HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding. Ed. Tom L. Beauchamp. Oxford; New York: Oxford University Press, 1999.
  2. ______. An Enquiry Concerning The Principles of Morals. Ed. Tom L. Beauchamp. Oxford; New York: Oxford University Press, 1998.
  3. ______. Essays Moral, Political and Literary. Ed. Eugene F. Miller. Indianapolis, Liberty Fund, 1985.
  4. ______. The Letters of David Hume. Oxford: Clarendon Press, 1932.
  5. ______. The Natural History of Religion and Dialogues concerning Natural Religion. Eds. A. Wayne Colver e John Valdimir Price. Oxford: Clarendon Press, 1976.
  6. ______. A Treatise of Human Nature. Eds. David Fate Norton e Mary J. Norton. Oxford; New York: Oxford University Press, 2000.
  7. MOSSNER, Ernest. The Life of David Hume. Oxford: Clarendon Press, 2001.

Autor: Marcos Ribeiro Balieiro