Teoria do conhecimento (surgimento)

            A origem do termo “teoria do conhecimento” (Erkenntnistheorie) é um ponto disputável entre os estudiosos. Hans Vaihinger, no pioneiro artigo sobre o assunto, publicado em 1876, no Philosophische Monatshefte, “Sobre a origem da palavra ‘teoria do conhecimento’”, aponta que as raízes conceituais da teoria do conhecimento estão em Locke – nas suas palavras, é nesse momento que “nasce a teoria do conhecimento enquanto ciência”[1]. Nessa senda surgem trabalhos na Alemanha, ao longo do século XVIII, que podem ser considerados como pertencentes ao ramo da teoria do conhecimento, como o de Andreas Rüdiger, sendo particularmente importante a publicação da primeira Crítica de Kant, quando o termo “crítica da razão” (Vernunftkritik) aparece como o equivalente da época para teoria do conhecimento. Mas é somente com Reinhold, na obra Teoria das capacidades epistêmicas do homem e metafisica, de 1832, que a expressão aparece pela primeira vez. O grande mérito de Reinhold teria sido o de empregar a palavra de forma rigorosa, separando-a da metafisica e, assim, da confusão que se faz presente no termo “doutrina do conhecimento” (Erkenntnislehre), que, cunhado por W.T. Krug, era usado de forma “sempre idêntica com metafisica”[2].

            Mas a hipótese de Vaihinger não representa um consenso estabelecido entre os estudiosos. Pouco tempo após a publicação desse artigo, Rudolf Seydel, no mesmo Philosophische Monatshefte, defendeu que a ocorrência do termo foi anterior ao seu uso por Reinhold, tendo aparecido pela primeira vez na troca de cartas entre Christian Hermann Weisse e Immanuel Hermann Fichte, sobre o tema da refundação da filosofia. Mais recentemente, Klaus Christian Köhnke procurou mostrar que a palavra surge pela primeira vez em 1819 na História da filosofia de Tennemann, conquistando a sua exatidão terminológica com Reinhold em 1829 no seu Manual de história geral da filosofia[3].

            Seja como for, pode-se dizer com alguma segurança que a veiculação mais influente do termo ocorre na segunda metade do século XIX, mais precisamente no contexto do retorno a Kant pregado pelos chamados neokantianos, tendo em vista a reabilitação da filosofia frente ao predomínio das ciências naturais. Nesse contexto, a teoria do conhecimento surge enquanto uma disciplina específica que investiga os limites do conhecimento humano. A esse respeito, é preciso se destacar o texto apresentado por Eduard Zeller em Heidelberg: Sobre o significado e tarefa da teoria do conhecimento (1862), o texto responsável por reputar dignidade acadêmica ao termo[4]. Essa apresentação, ao lado de outras realizadas pelo autor na mesma época – especialmente Sobre a tarefa da filosofia e a sua posição diante das ciências (1868) e Sobre a posição atual e a tarefa da filosofia alemã (1872) –, nos fornece acesso ao surgimento da teoria do conhecimento em seu caráter programático.

Nessas apresentações, Zeller se propõe a fazer um balanço da situação preocupante em que se encontrava a filosofia naquele momento, apresentando possíveis soluções. O seu ponto de partida está no reconhecimento de que a filosofia já não pode mais ser encarada como “rainha das ciências” uma vez que é inegável que as ciências particulares tornaram-se independentes[5]. Sendo assim, resta a pergunta: qual é então a tarefa da filosofia? Desde Platão, o domínio da filosofia era o do a priori, uma convicção que, em tempos mais recentes, foi mantida por Hegel. O problema, contudo, é que as ciências empíricas mostram que os resultados das operações dedutivas não são compatíveis com os fatos, sendo o caso de Hegel exemplar. Com efeito, dirá Zeller de forma sentenciosa, retiramos todo o conhecimento da experiência externa e interna, de modo que “o nosso saber filosófico não pode ser extraído de outra fundação (Grundlage)”[6]. A filosofia deve tomar “como modelo as ciências da natureza”, o que significa que ela não pode mais se instalar no reino da imaginação e fantasia, devendo ser um “realismo”[7]. Mas, se assim é, se a filosofia não pode se desvencilhar da experiência, temos o seguinte problema: o que confere independência à filosofia enquanto ciência?

            Toda ciência possui um objeto particular no real. Zeller distingue duas classes de conhecimentos científicos: o científico-natural e o histórico[8]. Mas e quanto à filosofia? Teria ela um objeto próprio? Zeller sugere que esse objeto deve ser buscado no espírito humano, que resiste a explicações fornecidas pelas ciências naturais e ciências históricas[9]. Trata-se, com efeito, de um domínio específico no espírito que deve ser examinado pela filosofia: o pensamento.

            Nesse sentido, a nova filosofia deve ser uma lógica. Lógica bem entendida enquanto “atividade do pensamento puro”, separada de “conteúdos determinados”[10]. Deve-se aqui tomar precaução, afastando a lógica de toda conotação hegeliana, para quem lógica é metafisica. Zeller recorre a um outro direcionamento, que remonta à logica formal: o estudo das formas e leis do pensamento. Mas com isso não se está anunciando o retorno a um puro formalismo. O que Zeller propõe é que a lógica deve estar conectada à teoria do conhecimento, ou seja, o estudo das leis do pensamento só é aceitável quando se coloca o problema do conhecimento e, no limite, o problema do conhecimento verdadeiro na experiência. Donde a necessidade de se acolher essa reabilitação da filosofia como um retorno a Kant. Como diz Zeller, na célebre apresentação de 1862 sobre a teoria do conhecimento: “o início da linha de desenvolvimento de nossa filosofia atual está em Kant”[11]; toda filosofia deve se voltar para a teoria do conhecimento de Kant, que prega que não há conhecimento sem a combinação entre elementos extraídos da experiência (objetivos) e do a priori (subjetivos). Trata-se, assim, de um ponto de vista diferente daquilo que Zeller chama de “empirismo dogmático” – que possivelmente concerne o “materialismo vulgar” –, que não se ocupa com questões epistêmicas. Pois se é certo que não temos como conhecer a realidade sem a experiência, também é certo que os dados da experiência sofrem influências do a priori. Assim, “necessitamos, em poucas palavras, reconhecer os elementos subjetivos, ideais, de nossas representações, assim como temos de reconhecer os objetivos, e sobre esse reconhecimento procurar determinar a relação cientificamente”[12]. Ainda que Zeller discorde da concepção kantiana de sensação como uma matéria caótica, bem como acredite ser discutível a eleição das categorias na primeira Crítica[13], Kant propôs, no seu modo de ver, o essencial que deve nortear a filosofia do futuro. O que se retém de Kant é que a tarefa da filosofia enquanto teoria do conhecimento é estabelecer a objetividade às exigências epistêmicas de todas as ciências empíricas.

 

Referências bibliográficas:

KÖHNKE, K.C., The Rise of Neo-Kantianism. Trad. R.J. Hollingdale. New York: Cambridge Univ. Press, 1991.

MAUTHNER, F., Wörterbuch der Philosophie. Neue Beiträge zu einer Kritik der Sprache. I. München/Leipzig: Georg Müller, 1910.

VAIHINGER, H., “Ueber den Ursprung des Wortes ‘Erkenntnisstheorie’” in: Philosophische Monatshefte, XII, 1876.

ZELLER, E., Vorträge und Abhandlungen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1877.

 


[1] VAIHINGER, H., “Ueber den Ursprung des Wortes ‘Erkenntnisstheorie’” in: Philosophische Monatshefte, XII, 1876, pp. 84 e 85.
[2] Idem, Ibidem, p. 86.
[3] Cf. KÖHNKE, K.C., The Rise of Neo-Kantianism. Trad. R.J. Hollingdale. New York: Cambridge Univ. Press, 1991, pp. 36 – 43.
[4] Cf. MAUTHNER, F., Wörterbuch der Philosophie. Neue Beiträge zu einer Kritik der Sprache. I. München/Leipzig: Georg Müller, 1910, p. 297. 
[5] Cf. ZELLER, E., “Ueber die Aufgabe der Philosophie und ihre Stellung zu den Übrigen Wissenschaften” in: Vorträge und Abhandlungen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1877, p. 447.
[6] Idem, Ibidem, p. 450.
[7] Idem, “Ueber die gegenwärtige Stellung und Aufgabe der deutschen Philosophie” in: Vorträge und Abhandlungen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1877, p. 474.
[8] Cf. Idem, Ibidem, p. 454.
[9] Cf. Idem, Ibidem, p. 459.
[10] Idem, “Ueber Bedeutung und Aufgabe der Erkenntnistheorie” in: Vorträge und Abhandlungen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1877, p. 479.
[11] Idem, Ibidem, p. 490.
[12] Idem, “Ueber die gegenwärtige Stellung und Aufgabe der deutschen Philosophie” in: Vorträge und Abhandlungen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1877, p. 474.
[13] Cf. Idem, “Ueber Bedeutung und Aufgabe der Erkenntnistheorie” in: Vorträge und Abhandlungen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1877, 492. 

 


Autor: Eduardo Nasser