Argumento da terceira possibilidade

Esse argumento se torna famoso especialmente com Adolf Trendelenburg no contexto de sua célebre polêmica com Kuno Fischer. Na sua obra capital, Investigações lógicas, Trendelenburg acusa Kant de não levar em consideração uma terceira possibilidade na sua formulação do caráter ideal do tempo e espaço. Kant alega que tempo e espaço não podem ser atribuídos à coisa em si, quer enquanto acidente, quer enquanto substância, pois essas formas a priori da sensibilidade possuem validade unicamente na esfera subjetiva. No entanto, pondera Trendelenburg, quando se explica que o tempo e  o espaço são condições subjetivas, com isso “não é provado com nenhuma palavra que eles não possam ser simultaneamente também formas objetivas”, i.e, “não podemos assim rejeitar de modo algum o espaço e o tempo das coisas porque Kant as encontrou no pensamento”[1].

Seja como for, é preciso ressaltar que se trata de um argumento mais antigo, formulado por uma quantidade quase incontável de críticos de Kant de maneiras nem sempre análogas, e que merecem ser matizadas. Um primeiro aspecto significativo da objeção realça que, ao apresentar uma hipótese que não foi provada como uma verdade, Kant nada mais faz senão advogar — como aponta Eberhard e Erdmann —, uma petitio principii. Isso quer dizer que do caráter a priori do tempo e espaço não se segue necessariamente a sua subjetividade, de modo que nada impede que essas formas pertençam também ao inteligível. Uma outra maneira de apresentar o argumento remonta a Pistorius. Segundo esse filósofo, quando Kant não descarta a possibilidade da coisa em si, seria preciso atribuir-lhe um equivalente espacial e temporal, apesar de sua natureza não espacial e não temporal. Isso quer dizer que a coisa em si só se torna um conceito inteligível quando tratada por analogia com as nossas formas espaço-temporais, o que faz com que seja absolutamente aceitável retomar a teoria leibniziana da harmonia preestabelecida, supondo-se um tempo e um espaço simultaneamente subjetivo e objetivo. Por fim, uma última forma da objeção nos é oferecida por Maass, que afirma que, se nada podemos saber da coisa em si, não é justo dizer, como o faz Kant, que ela carece de espacialidade e temporalidade. Sendo incognoscível, não podemos nem negar, nem afirmar algo sobre a coisa em si, fazendo, assim, com que tempo e espaço, para além do horizonte subjetivo, permaneçam como uma possibilidade.

Houve quem tentasse proteger Kant dessas objeções. Reinhold, por exemplo, dirá que a maior prova da sensatez da teoria kantiana encontra-se na absoluta diferença que deve ser remetida à coisa em si, i.e, se a coisa em si não é representação, ela não pode acolher formas da representação. Fischer, por sua vez, defende que, se o espaço fosse real, a matemática seria impossível; e, se o tempo fosse real, a liberdade seria impossível. Além disso, Fischer defende, contra Trendelenburg, que Kant havia considerado a terceira possibilidade, apresentando soluções contundentes. Outros nomes, como Abicht e Jacobi, recorreriam a proposições metafísicas e teológicas para defender Kant: para Abicht, caso tempo e espaço fossem reais, a exigência da simplicidade na natureza seria contradita; para Jacobi, fosse a coisa em si temporal, ela seria privada de divindade. Contudo, todos esses esforços pouco contribuíram para dar mais consistência à teoria kantiana. Contra Reinhold, Maass dirá que não se pode recusar a doação de predicados à coisa em si, de modo que seu argumento continua sendo uma petitio principii. Também contra Reinhold, Schwab e Schulze dirão que não há nenhum impedimento evidente em se supor que a coisa em si receba formas da representação. Contra Fischer, Vaihinger ressalta a inocência de se assumir que o espaço real contradiz a possibilidade do espaço matemático. Ele também mostra de que forma Kant não enfrentou seriamente a terceira possibilidade, que continua sendo uma lacuna no seu edifício teórico. Assim, Eberstein parece estar correto quando diz que os kantianos nunca ofereceram uma solução definitiva e convincente para o problema levantado[2].


Referências bibliográficas:
CHENET, F.X., “Que sont donc l´espace et le temps? Les hypotheses considérées par Kant et la lancinante objection de la “troisième possibilité” in: Kant Studien, 84, 1993.
MICHEL, K., Untersuchungen zur Zeitkonzeption in Kants Kritik der reinen Vernunft. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2003.
TRENDELENBURG, A., Logische Untersuchungen, I. Leipzig: Verlag von S. Hirzel, 1862. VAIHINGER, Kommentar zu Kants Kritik der reinen Vernunft, 2. Stuttgart/Berlin/Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft, 1921.

 


[1] TRENDELENBURG, A., Logische Untersuchungen, I. Leipzig: Verlag von S. Hirzel, 1862, p. 163.
[2] Para um exame detalhado do desenvolvimento e recepção do argumento da terceira possibilidade, cf. VAIHINGER, Kommentar zu Kants Kritik der reinen Vernunft, 2. Stuttgart/Berlin/Leipzig: Union Deutsche Verlagsgesellschaft, 1921, pp. 134 – 151; 290 – 326. CHENET, F.X., “Que sont donc l´espace et le temps? Les hypotheses considérées par Kant et la lancinante objection de la “troisième possibilité” in: Kant Studien, 84, 1993, pp. 129 – 153. MICHEL, K., Untersuchungen zur Zeitkonzeption in Kants Kritik der reinen Vernunft. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2003, pp. 191 – 218.