Materialismo vulgar

            Conforme surge ao longo do século XIX uma nova concepção da ciência, agora bem entendida enquanto ciência natural ou experimental em antagonismo à ciência enquanto conhecimento dos universais, exige-se uma nova visão de mundo. Essa nova visão de mundo será fornecida pelo “materialismo vulgar”.

            Antes de tudo, é muito importante matizar os tipos de materialismo que surgem na Alemanha do século XIX pois, apesar de consonantes em muitos aspectos, sobretudo no que concerne o antihegelianismo, existem marcantes diferenças.

            O primeiro tipo de materialismo seria aquele próprio à chamada “esquerda hegeliana” representada por nomes como Ludwing Feuerbach e David Strauss. Para alguns, Feuerbach e Strauss são os “pais do materialismo”[1]. O que se inicia com essa corrente, principalmente através de Feuerbach, é uma inversão de Hegel. Mediante um reajuste da equação hegeliana entre real e racional, toma-se agora o ser sensível como o único ser real.

            Mas poderíamos realmente enxergar na esquerda hegeliana um materialismo rigoroso? Concorrente à crítica do racionalismo hegeliano, Feuerbach combate também a equiparação feita por Hegel entre filosofia e teologia, fé e saber, propondo, no seu lugar, um antropologismo. O mundo não seria mais de Deus, mas do homem, que agora passa a fixar de forma soberana as suas metas. Contudo, como bem destaca Lange na sua célebre obra A história do materialismo, “nessa glorificação exclusiva do homem nós reconhecemos um traço particular da filosofia de Hegel e que separa Feuerbach dos materialistas propriamente ditos”[2]. Pois “o verdadeiro materialista sempre estará inclinado a voltar os seus olhos ao grande todo da natureza exterior e a considerar o homem como uma onda no oceano do movimento eterno da matéria”[3]. Ademais, o materialismo concebido por Feuerbach se faz possível através de um procedimento dedutivo, pelo encadeamento lógico de ideias, devendo ser caracterizado, na melhor das hipóteses, enquanto um “materialismo abstrato”[4].

            Será por uma via bastante distinta que surge uma outra vertente materialista que remonta ao mesmo período na Alemanha, e que está em maior proximidade com a tradição do materialismo francês e inglês do século XVIII.

            O materialismo, até o século XIX, prospera principalmente na França e Inglaterra. Como diz Lange, “ainda que o materialismo moderno se organize enquanto um sistema pela primeira vez na França, a Inglaterra também foi a terra clássica da visão de mundo materialista”[5]. Especialmente significativa será a cena intelectual francesa da segunda metade do século XVIII, movida pelos escritos de nomes como Buffon, Helvétius, Cabanis e, sobretudo, Holbach, cuja obra Sistema da natureza passa a ser vista como a “bíblia de todo o materialismo[6]. Um dos grandes traços dessa voga está no seu trânsito pelas ciências naturais, como no caso do fisiologismo de Cabanis.

            Toda essa agitação contrastava com a situação intelectual na Alemanha, que resistia de forma impetuosa ao materialismo, principalmente através de Leibniz e os defensores do leibnizianismo. Com efeito, é possível dizer que essa resistência à tradição iluminista anglo-francesa era um traço distintivo dos acadêmicos alemães, que viam aí um sinal de declínio, principalmente no campo da formação, devido à tendência ao “utilitarismo”[7]. Porém, esse quadro muda com o surgimento dos assim chamados “materialistas vulgares” – uma designação dada primeiramente por Vaihinger e depois Engels[8] –, que têm como seus maiores representantes Jacob Moleschott, Carl Vogt e Ludwig Büchner. Ao contrário do materialismo abstrato da esquerda hegeliana, o materialismo vulgar encontra os seus fundamentos no pensamento positivo e nas ciências naturais, estando, assim, bastante próximo dos materialistas franceses e ingleses[9]. Com efeito, o materialismo vulgar pode ser entendido como a manifestação mais concreta da “visão de mundo” das ciências naturais. Como diz Büchner, na obra por muitos considerada como a mais importante dessa voga, Força e matéria, o que ele ali apresenta pode se assemelhar àquilo que já foi dito pelos antigos, como os gregos e indianos. Porém, as antigas considerações de inclinação empirista só podem encontrar fundamento no “progresso da ciência natural do nosso século”[10]. Dessa forma, se estabelece o referencial metodológico essencial do materialismo alemão, ou daquilo que Büchner chama de o “conhecimento filosófico-realista”: partir dos fatos. É tal elucidação que prevenirá o estudioso da natureza de enveredar pelo caminho errante percorrido pelos filósofos até então, sobretudo no ramo da filosofia natural, que presos na especulação e hermetismo, perderam de vista os fatos e, assim, a capacidade de se expressar com simplicidade e concisão[11].

            É do exame dos fatos que se segue o princípio nuclear do materialismo vulgar: a indissociabilidade entre força e matéria. O primeiro livro que introduz essa ideia de forma programática é Ciclo da vida, de Moleschott, uma compilação de sua troca de cartas com Liebig sobre grandes temas filosóficos, como alma, liberdade, imortalidade e finalismo. Büchner retoma de forma sistemática o tema, transformando-o no lema da nova corrente. O que ele procura mostrar é que toda tentativa de se separar força e matéria é um esforço inócuo que não passa de pura abstração. A justificativa é simplória: a observação mostra que tal separação é impensável. Primeiramente, é inconcebível pensar a matéria sem estar inserida uma relação de atração e repulsão. Inversamente, a ideia de uma força como a eletricidade e a atração só é plausível quando em relação a partículas e moléculas. A matéria é a substância que subjaz às forças e as forças são propriedades da matéria. Com essa formulação, o primeiro grande alvo é o criacionismo teísta, posto que tendo a química provado a eternidade da matéria – e aqui não se deve pensar em átomos uma vez que uma das peculiaridades dessa corrente materialista é aceitar a premissa pascaliana da infinita divisibilidade da matéria[12] –, e consequentemente a da força, a ideia de uma força exterior à matéria, criadora, cai por terra. Mas a filosofia também é uma vítima da imbricação entre força e matéria. Pois derivam desse princípio as principais teses dos materialistas vulgares, que são também virulentas críticas da filosofia, sendo os campos mais afetados os da psicologia racional, lógica e ética. Uma vez que não existe separação entre força e matéria, também não deve haver uma alma separada do corpo, bem como faculdades da alma independentes, como o pensamento e livre arbítrio, de modo que todas as manifestações psíquicas devem ser explicadas recorrendo-se à fisiologia. O consenso entre os materialistas será que “atividades espirituais são somente funções do cérebro”[13].

 

Referências bibliográficas:

BÜCHNER, L., Kraft und Stoff. Empirisch-naturphilosophische Studien. Leipzig: Theodor Thomas, 1867.

FREULER, L., La crise de la philosophie au XIX siècle. Paris: Vrin, 1997.

JANET, P., Le matérialisme contemporain. Paris: Germer Baillière, 1875.

LANGE, F., Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart,. Leipzig: Friedrich Brandstetter, 1921.

RINGER, F.K., O declínio dos mandarins alemães. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edusp, 2000.

VOGT, C., Köhlerglaube und Wissenschaft. Eine Streitschrift gegen Hofrath Rudolf Wagner in Göttingen. Giesen: Rieder’ sche, 1855.

 


[1] Cf. LANGE, F., Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart,. Leipzig: Friedrich Brandstetter, 1921, p. 71.
[2] Idem, Ibidem, p. 72.
[3] Idem, Ibidem.
[4] JANET, P., Le matérialisme contemporain. Paris: Germer Baillière, 1875, p. 11.
[5] LANGE, F., Op. cit., I, p. 291.
[6] Idem, Ibidem, p. 357.
[7] Cf. RINGER, F.K., O declínio dos mandarins alemães. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Edusp, 2000, p. 94.
[8] FREULER, L., La crise de la philosophie au XIX siècle. Paris: Vrin, 1997, p. 55.
[9] JANET, P., Op. cit., p. 11.
[10] BÜCHNER, L., Kraft und Stoff. Empirisch-naturphilosophische Studien. Leipzig: Theodor Thomas, 1867, p. XII.
[11] Cf. Idem, Ibidem, pp. XIII – XIV.
[12] Cf. JANET, P., Op. cit., p. 24.
[13] VOGT, C., Köhlerglaube und Wissenschaft. Eine Streitschrift gegen Hofrath Rudolf Wagner in Göttingen. Giesen: Rieder’ sche, 1855, p. 33.

 


Autor: Eduardo Nasser