A vontade de Saber

Em nossa avaliação, Foucault, no primeiro volume da trilogia destinada à história da sexualidade, vale-se do procedimento genealógico empreendido por Nietzsche para desvelar a questão da sexualidade desde a inscrição discursiva dela. Em A vontade de saber, encontramos uma genuína genealogia da moral que vai ao encontro da afirmação de Foucault a J._J. Brochier de 1975, acerca de o seu fazer filosófico que “Se (...) fosse pretensioso, daria como título ao que faço: genealogia da moral”[1]. Ora, ao referir-se às relações de saber e poder expressas nos discursos sobre a sexualidade, Foucault procede à busca da proveniência dela, do surgimento de cada consideração referente ao tema, de modo a mostrar seu processo de gravação e transformação avaliativa. Sexualidade como máscara, medicamento, veneno, diria Nietzsche. Mas é Foucault quem fala contando com o discurso nietzschiano.

A vontade de saber principia com uma suspeita alusiva à repressão do sexo como expressão de sua história, mas não no sentido de refutá-la ou de falseá-la, mas, justamente, querendo situá-la nos discursos sobre o sexo nas sociedades modernas desde o século XVII[2] de modo a entender o sentido e o valor postulados no devir dele. Recorre, para tanto, ao documento registrado, ou, nas palavras de Nietzsche, ao longo texto difícil de decifrar do passado moral humano. Como decifrador de hieróglifos, Foucault desce as profundezas de cada gestação discursiva visando a mostrar seu processo de surgimento e modificação. Daí ele recorrer a textos de 1769, Élément généraux de Police, de 1854, Pratique des confesseurs e de 1857, Étude médico-légale sur les attentas aux moeurs, aos documentos do Concílio de Trento, por exemplo, entre muitos outros. Por que recorremos às referências bibliográficas de Foucault? O que ensejamos com tal procedimento? Ora, mais do que expor as teses foucaultianas sobre a sexualidade, queremos mostrar o nietzschianismo de Foucault presente no seu discurso filosófico desde a e, particularmente, em A vontade de saber. Foucault genealogista prefere, bem como Nietzsche, o cinza, isto é, o documento havido, os registros passados, o longo texto hieroglífico difícil de decifrar do passado moral humano. É neles que vai encontrar o que foi dito sobre o sexo a partir do século XVII e, nesse sentido, proceder à revisão ou à resignificação da hipótese de repressão.

A partir de três questões, quais sejam, uma história, outra histórico-teórica e uma terceira histórico-política, Foucault dirige-se à crença na “hipótese repressiva”. Em termos históricos, vem à tona a necessidade de evidência sobre a repressão do sexo. Afinal, elas existem? De modo histórico-teórico, entra em cena a pergunta pela mecânica do poder enquanto sendo ou não de ordem essencialmente repressiva. Por fim, mas, em certo sentido, por entremeios, a indagação histórico-política requer a avaliação do discurso, pois ao relacionar repressão e poder indaga pelo seu funcionamento sem contestação ou pela denúncia e disfarce simultâneos. Munido de suspeitas, Foucault pode enunciar a questão que o move e que constituirá o pano de fundo de sua genealogia da moral. Enunciemo-la: “Em suma, trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder – saber – prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre a sexualidade humana”[3]. Lembrando o aspecto fundamental que rege a genealogia do pensador francês como a identificação da vontade de saber que sustenta e instrumentaliza esse ou aquele discurso sobre o sexo. Em vista disso, a verdade ou a mentira acerca dele serem, de per si, irrelevantes. O que conta é a vontade de saber que move a verdade ou a mentira de um discurso. Nisso o filósofo francês detém-se enquanto genealogista da moral.

Foucault, como Nietzsche, admite a inverdade como condição da vida e, em vista disso, podemos dizes que a filosofia dele, como a do mestre Nietzsche, situa-se para além de bem e mal. O que conta, em ambos os pensadores, é a vontade que se manifesta em cada formação discursiva e que, no limite, expressa e revela o modo de ser daquele(s) que avalia(m), exposto(s), gradativamente, na leitura de um discurso, na combinação de forças nele presentes, nas lutas dele geradoras. Isso que está em caso na vontade de saber. Continuemos com as comparações, do mesmo modo que Nietzsche, Foucault rejeita a unicidade do conceito e do fato originário e recusa a vigência de uma unidade subjetiva como regente através de um sujeito fundante do ser, do conhecer e do agir. Há uma recusa do fundamento enquanto rejeição de significados prévios e a afirmação de verdades e de mentiras postuladas pela vontade de saber. A genealogia foucaltiana, seguindo de perto a de Nietzsche, detém-se no conhecimento da criação e das condições de criação das formações discursivas e, ao fazê-lo, traz a tona o valor próprio delas; mesmo que a palavra valor não seja usada pelo discípulo na aplicação dos procedimentos do mestre. Observe-se o texto de Foucault:

...buscar as instâncias de produção discursiva (que, evidentemente, também organizam silêncios), de produção de poder (que algumas vezes tem a função de interditar), das produções de saber (as quais, frequentemente, fazem circular erros ou desconhecimentos sistemáticos); gostaria de fazer a história dessas instâncias e de suas transformações[4].

 Voltemos à sexualidade entendida historicamente por Foucault desde o aparecimento e as transformações que se processaram nas sociedades modernas, procurando mostrar o quanto o empreendimento foucaultiano é, simultaneamente, tributário e apropriador do método de Nietzsche. Tributário, porque reconhece que Nietzsche lhe forneceu os instrumentos de pensamento;  apropriador, porque se vale dos procedimentos nietzschianos para empreender uma genealogia da moral. Nesse sentido, não se trata de a moral como Nietzsche o fez, mas refletir a partir do que ele fez nesse âmbito e, assim, assumir um pensar com o filósofo mais do que sobre o filósofo, embora também o inclua e o pressuponha. A nosso ver, Foucault imbuiu-se da atmosfera gerada pelas noções do autor de Assim falava Zaratustra para dirigir o olhar à sexualidade. Dá-se, propriamente, o nascimento do genealogista francês mediante o tratamento do filósofo alemão como instrumento de pensamento. Daí a história da sexualidade enquanto genealogia da moral.

 Em A vontade de saber, encontramos que, segundo a hipótese repressiva, no século XVII iniciaria uma repressão das sociedades burguesas, da qual não teríamos nos libertado.  É o momento em que se torna mais custoso denominar o sexo[5] mediante o controle da circulação dele na linguagem, embora ele tenha sido reduzido ao nível da linguagem para viabilizar a extinção das palavras que o vivificam. Nas palavras de Foucault: “mutismos que, de tanto calar-se, impõe o silêncio. Censura”[6].  Todavia, na ótica de Foucault, a observação das transformações que ocorreram nos três últimos séculos revela não o mutismo concernente ao sexo, mas o que o autor denomina explosão discursiva, mesmo com os controles sobre os enunciados da época clássica. Por isso, ele aponta para uma inversão fenomênica no nível dos discursos bem como dos seus domínios, uma vez que houve uma proliferação de discursos a partir do século XVIII.

Partindo do Concílio de Trento, Foucault aponta para a evolução da pastoral católica e do sacramento da confissão. A Contra-Reforma como eficaz no processo de acelerar a confissão anual, fazendo com que tudo seja dito, de modo a reter o sexo em um discurso que não permite ocultações. Formado em uma tradição ascética e monástica, o projeto de “colocação do sexo em discurso” estende-se para todos. “A pastoral cristã inscreveu, como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo que se relaciona com o sexo pelo crivo interminável da palavra”[7], cujo objetivo era tornar moralmente aceitável e útil. Eis, para Foucault, a grande sujeição que se processa. Assim, não há propriamente uma censura sobre o sexo, mas, diferentemente, uma promoção discursiva dele. Principalmente no século XVIII, nasce um discurso racional sobre o sexo, explicitado nas pesquisas quantitativas ou causais que dele fazem.  Fala-se do sexo, mas não se tem uma teoria da sexualidade, ao invés disso, ela aparece de modo analítico, contábil e classificatório. É o funcionamento e a administração que vige. Mesmo a instituição pedagógica não faz calar o sexo, mas o remete a formas do discurso. Nisso tudo, Foucault vê uma relação diretamente proporcional entre intensificação de poder e multiplicidade de discurso. Os discursos articulam-se desde um feixe de relações de poder.

Ao final das considerações acerca da hipótese repressiva, Foucault conclui pela proliferação dos discursos sobre o sexo enquanto uma espécie de mecânica das próprias incitações da fala quer elas o “quebrem” quer o “reproduzam”. Daí ele concluir afirmando: “O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo” [8]. Eis o sentido da suspeita com referência à hipótese discursiva, haja vista que a história dos discursos sobre o sexo não a corrobora pertinentemente.

Na sequência, é apresentada, em A vontade de saber, a implantação perversa, que aponta para o século XX como iniciador de heterogeneidades sexuais. Enquanto até o final do século XVIII houve, na avaliação de Foucault, três códigos reguladores das práticas sexuais, quais sejam, o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil, desde o século XIX processou-se a proliferação de sexualidades; cujas regras de práticas propagam-se. Tem-se o exame médico, a investigação psiquiátrica, o relatório pedagógico e os controles familiares com um duplo papel. Por um lado, incitam o prazer através do exercício do poder controlador, fiscalizador e questionador, por outro, o prazer que invade o poder que se exerce. Embora, como aponta Foucault, o objetivo central desse exercício seja aparentemente barrar as sexualidades “errantes” e “improdutivas”, ao invés de organizarem fronteiras demarcatórias do possível e do interdito, remetem a, como diz o pensador francês, espirais de poder e prazer[9]. É nesse meio de exercício de poder sobre os corpos que se configuram as perversões.

Dada o modo como as sexualidades, notadamente heréticas, multiplicaram-se a partir do século XIX e ao surgimento de um dispositivo de controle diferente da lei que, embora interdite, promove a multiplicação das sexualidades, Foucault mostra a necessidade de abandonar a hipótese repressiva, já que as sociedades industriais modernas, efetivamente, não dão início a uma fase de repressão do sexo: “nunca tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a obstinação dos poderes para se disseminarem mais além”[10].

Ponto de inflexão importante na exposição do discurso filosófico foucaultiano acerca da sexualidade é descurar essa última e concentrar-se na questão do poder. Assistimos o anúncio, enquanto exercer-se em um processo contínuo de controle e proliferação. Um jogo de alternância e continuidade, no limite, uma luta entre vencedores e vencidos movida pelo exercício contínuo de vencer resistências. O poder, como veremos principalmente na exposição acerca do método, não se localiza, ao contrário, se difunde. São redes que se exercem por todos os lados e em todos os momentos. Persistência ao invés de cessação, de pausa temporária ou interrupção abrupta; é continuidade da disputa, do jogo, alternância completa. Daí o conceito de luta que percebemos subjazer ao de poder foucaultiano. Nesse sentido, não podemos deixar de ver o discurso filosófico de Nietzsche atravessar o de Foucault. Afinal esse poder que se exerce pode ser compreendido desde a luta preconizada por Nietzsche na base do estabelecimento das significações.   

Voltemos a Nietzsche para mostrar o vínculo existente entre Foucault e o filósofo alemão.  A noção de luta (Kampf) tem uma posição privilegiada na filosofia de Nietzsche, desde A disputa de Homero e O nascimento da tragédia até Assim falava Zaratustra e as demais obras do terceiro período. Presente em todos os momentos do discurso de Nietzsche, expressa sempre o movimento, embora com acréscimos e contornos diferenciados ao longo da elaboração da obra do filósofo. Em A disputa de Homero, a luta aparece como disputa (Wetkampf), resgatando o sentido do agon grego que aparece na Ilíada quando do combate entre os heróis helenos. Trata-se da disputa que, vista como qualidade, atua estimulando os homens à ação.

Em A dialética pacificadora, Gérard Lebrun aponta para a retomada, no conceito de vontade de potência, do agon presente já em A disputa de Homero, em que a disputa e não o aniquilamento do adversário é valorizado: "Esse texto deixa transparecer um traço característico da 'vontade de potência' mais próximo de um jogo que da guerra total, a luta é sempre pela dominação, nunca pelo aniquilamento do adversário" [11]. Em O nascimento da tragédia, a luta aparece desde a ação de dois impulsos antagônicos, o apolíneo e o dionisíaco, respectivamente, que se manifestam no desenvolvimento da arte. A luta aparece, por conseguinte, conduzindo à produção de algo, à criação propriamente artística. Quando da elaboração de Humano, demasiado humano, a luta retorna, mas, nesse momento, relaciona-se com a vida enquanto prazer, estando vinculada à busca de prazer.

No terceiro período, a luta passa a ter um caráter mais abrangente enquanto entendida como traço da vida. Todo o existente é visto como um campo de batalha, definido, assim, desde a luta. Determinações de graus e forças é uma forma de exercer-se que vai ao encontro do poder foucaultiano, que se manifesta em todos os segmentos e vias, de todos os modos, que é movimento de disputa contínua. A sexualidade é o objeto que permite desvelar as relações de poder na base de toda manifestação, o que está em questão e se constitui como premente em Foucault é o método que remete ao se exercer do poder. E isso, meus caros, remonta a Nietzsche sua condição de possibilidade. Eis um traço marcante do nietzschianismo de Foucault.

Mas voltemos à genealogia da moral foucaultiana em a história da sexualidade, cujo próximo passo é a investigação da scientia sexualis, que se inicia com um balanço dos discursos que se multiplicaram sobre o sexo nos últimos três séculos, marcando que até Freud houve a manutenção do segredo. Tratava-se mais de ocultar aquilo do que se fala do que o manifestar. E isso tanto no discurso dos cientistas quanto dos teóricos, que tem na fala neutra da ciência a mais alta significação, enquanto mostra a subordinação dela a uma moral – veja-se, novamente, o discurso de Nietzsche presente e acentuado. Na ótica de Foucault, durante o século XIX, o sexo aponta para sua inscrição em dois registros diferentes, quais sejam, o da biologia da reprodução, que se desenvolve a partir do que ele denomina uma normatividade científica geral, e o da medicina do sexo, cujas regras remetem a origens diversas. Por trás da distinção entre elas estaria em uma a vontade de saber, enquanto, em outra, a vontade de não-saber. Todavia, mesmo o calar remete à vontade de verdade:

O importante é que o sexo não tenha sido somente objeto de sensação e de prazer, de lei ou de interdição, mas também de verdade e falsidade, que a verdade do sexo tenha-se tornado  coisa essencial, útil ou perigosa, preciosa ou temida; em suma, que o sexo tenha sido constituído em objeto de verdade[12].     

Eis outro tributo a Nietzsche, pois Foucault vale-se do conceito de vontade de verdade nietzschiano. Vejamos como em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche faz alusão direta ao impulso à verdade e ao pacto de sua origem, da oposição entre verdade e mentira e da postulação das leis da verdade, mostrando, ser ela proveniente de uma necessidade de impedir a guerra de todos contra todos, em suma, uma mera convenção, em Para além de bem e mal e nos Fragmentos póstumos posteriores, não deixará de vê-la como acordo de paz, mas perceberá sua importância para a existência humana. Na Gaia ciência mostrará de modo iniludível a vinculação da vontade de verdade à moral. Imbricar verdade e moral é outro feito inusitado que mostra as implicação do discurso filosófico mais com a moralidade e a exigência de não se deixar enganar do que com o conhecimento e a objetividade da referida verdade.

Na sequência, Foucault apresenta os dois grandes procedimentos que produziram a verdade sobre o sexo. São eles as sociedades que adquiriram uma ars erótica e aquelas que praticaram uma scientia sexualis, essa última pertencente à nossa civilização.  A diferença existente entre ela é que a primeira a verdade se produz desde o prazer enquanto prática, isto é, determinado pela intensidade, qualidade e duração; sempre envolto em um segredo gerador da própria manutenção, que se efetiva quando ele é transmitido. Oposta à iniciação e ao segredo da ars erótica, a segunda remete a prática da confissão. A produção da verdade passa pela confissão desde o Concílio de Latrão, ao regulamentar em 1215 o sacramento da penitência, desenvolvendo-se e inscrevendo-se nos mais variados meios na sociedade Ocidental. Daí Foucault afirmar ter se tornado o homem ocidental “um animal confidente”, pois, para ele: “A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder”[13]. Daí Foucault mostrar o quanto a verdade sobre o sexo está ligada a essa forma discursiva, em que há uma coincidência entre os sujeitos da fala e do enunciado, entre o falar e o que se fala, articulando o saber à confidência: “A confissão foi, e permanece ainda hoje, a matriz geral que rege a produção do discurso verdadeiro sobre o sexo”[14].

Ponto importante da história da sexualidade de Foucault foi mostrar que, através “de uma codificação clínica do ‘fazer falar’”, efetivado na combinatória da confissão com o exame; por meio “do postulado de uma causalidade geral e difusa”, cuja sustentação está na dotação do sexo de uma causalidade inesgotável; mediante o “princípio de uma latência intrínseca à sexualidade”, que faz o sexo funcionar como obscuridade; por intermédio “do método de interpretação” que legitima a fala naquele que ouve; e, por fim, “através da medicalização dos efeitos da confissão” por meio de operações terapêuticas, constituíram os procedimentos da vontade de saber que fizeram a confissão funcionar em formas científicas. Em vista disso, a sociedade ocidental instaurar uma scientia sexualis, rompendo completamente com a ars erótica. Em suma, a confissão gerou e produziu a verdade do sexo, configurando-se como dispositivo que faz aparecer a sexualidade como “verdade do sexo e dos prazeres”, que, como diz Foucault, “é o correlato dessa prática discursiva desenvolvida lentamente, que é a scientia sexualis[15]. Por isso, fazer a história da sexualidade é, simultaneamente, no discurso filosófico foucaultiano, fazer a história dos discursos. Somente desse modo, é possível precisar as estratégias de poder imanentes à vontade de saber.

Continuando a história da sexualidade, Foucault vai mostrar o que está e esteve em jogo desde o princípio de sua genealogia. Aquilo que a atravessa e a define, que marca um modo de proceder objetivado no discurso filosófico de a vontade de saber e que se denomina uma analítica do poder Há um distanciamento do que seria uma teoria dele: “para uma definição do domínio específico formado pelas relações de poder e as determinações que permitem analisá-lo”. Nesse momento, o pensador francês encaminha-se para a questão do método, o que nos permitirá uma aproximação direta com Nietzsche, pois, assim como o pensador alemão, Foucault rejeita compreender o poder como representação, mesmo que se refira à forma jurídico-discursiva, podemos estendê-la a todas as formas de representação do poder, que se configuraram desde a recusa da compreensão dele como um exercer-se nas variadas esferas ao invés de ser antecedido por um procedimento que o processa e torna eficaz.

Encontramos, nesse momento, novamente e diretamente, a ressonância da filosofia de Nietzsche ao deixar explícita a diferença existente entre poder como constituição, que remete ao forte, senhor e sua moral nobre e o poder como representação, expressão do fraco e sua moral de escravos, que realiza a inversão dos valores nobre-aristocráticos; através da associação que viabiliza a representação de si como poderoso e da tentativa de aniquilamento do adversário, presentes em segmentos políticos históricos, dentre eles, o Terceiro Reich, via latência do extermínio do outro, do diferente e, via de regra, de forma isolada mais potente.

Sob esse aspecto, o poder de Foucault coincide com a força com a força em Nietzsche e o poder como representação vai ao encontro do paralogismo, em que a força aparece separada do que ela pode. Mas o autor de Assim falava Zaratustra deixa claro que, a distinção entre a força e seus efeitos manifesta-se em uma ficção que tem por finalidade possibilitar o julgamento da força, à medida que suas manifestações passam a ser vistas como realizadas por um sujeito de forma livre e espontânea. A sedução da linguagem determina, segundo Nietzsche, essa separação, a partir do condicionamento do ato a uma causa eficiente. Todo esse mecanismo construído tem por objetivo incutir na força uma culpa pelas suas manifestações espontâneas. Desse modo, o efeito, manifestação da força, estaria condicionado por um sujeito livre que poderia ou não ter agido de determinada forma.

Na perspectiva nietzschiana, o desdobramento de um fenômeno em causa e efeito constitui um erro, devido a sua não existência. A força não consiste apenas no querer ser forte, mas no ser forte. O ato é tudo, pois, ao mesmo tempo, manifesta a força ou a fraqueza, que encontram a determinação na relação de uma força com a outra. Assim, vemos o poder em Foucault, exigindo a completa distinção entre o exercer-se dele e o ser representado por ele. Por isso, Foucault pensa: “o sexo sem a lei e o poder sem o rei”[16], como apresentaremos sequencialmente na exposição acerca do método, assim como a apropriação do conceito de força em Nietzsche como correlato do de poder em Foucault.

Na parte concernente ao método, coube a Foucault, justamente, especificar em que sentido utiliza a palavra poder, para excluir de seu campo de abrangência tanto o conjunto de instituições que socialmente detém o poder de mando e regulamentação entre os membros de uma coletividade instituída e, nesse sentido, é identificado com o Estado, quanto o poder como regra ou sistema de dominação exercido por um elemento específico. Não se trata de localizar ou situar o poder em um campo ou horizonte determinado e delimitado, mas ao contrário, perceber que se trata de uma disseminação contínua, que está imersa em todo e qualquer segmento. Daí a remessa feita pelo filósofo francês do sentido de poder ao de multiplicidade de correlações de forças, que se exercem, efetivam, lutam, jogam e constituem organizações. 

As instituições, o Estado, o elemento específico são formas terminais do poder, porque resultam, enquanto corpo que gesta, das estratégias que tem proveniência na luta e no jogo da multiplicidade de forças. Nas palavras de Foucault: “o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares”[17].  Sendo assim, é impossível adquiri-lo, compartilha-lo ou mesmo tomá-lo, pois o poder, sob essa ótica, não está jamais localizado. Todas as relações, das econômicas às de conhecimento, pressupões relações de poder que lhes são imanentes enquanto produtoras das demais. Outra especificidade do conceito foucaultiano de poder é compreendê-lo como, simultaneamente, relações intencionais e não subjetivas, porque, no primeiro caso, remetem a uma mirada do poder que se exerce e, no segundo, em função do excluir uma instância outra, um sujeito, que possa explicá-lo externamente. Não há, nesse caso, causalidade ou subjetividade às quais se possam remeter esse conceito. De modo diverso da exterioridade explicativa é a imanência estrita das lutas e jogos de forças que permite compreender o conceito de poder em Foucault. Afinal, para ele: “É nesse campo de correlações de força que se deve tentar analisar os mecanismos de poder”[18].

Os discursos sobre o sexo em Foucault imergem das relações de poder enquanto múltiplas e móveis. Em vista disso, ele o analisa não por uma remessa à repressão ou à lei, mas em termos estritos de poder, no sentido, sempre, de campos de forças em combate, na mesma acepção de Nietzsche. É isso que o leva, com relação à genealogia da moral empreendida em a história da sexualidade, a estabelecer quatro regras metodológicas, entendidas mais como prescrições da prudência. A primeira delas é a Regra da imanência que se configura enquanto remete o conhecimento acerca da sexualidade a uma constituição que vem a ser a partir de relações de poder. “Se a sexualidade se constitui como domínio a conhecer, foi a partir de relações de poder que a instituíram como objeto possível” [19]. A segunda, Regra das variações contínuas remete justamente ao esquema que as correlações de forças impõem em termos de modificações constantes no jogo. Entre distribuições de poder e apropriações de saber processam-se, o que o filosofo francês denomina, cortes instantâneos em processos. “As relações de poder-saber não são formas dadas de repartição, são ‘matrizes de transformações’”[20]. A Regra do duplo condicionamento, terceira, remete aos encadeamentos sucessivos entre as forças em relação no palco da disputa, em que não há homogeneidade ou descontinuidade: “ao contrário, deve-se pensar em duplo condicionamento, de uma estratégia, através da especificidade das táticas possíveis e, das táticas, pelo invólucro estratégico que as faz funcionar”. A última prescrição, Regra de polivalência tática dos discursos acentua o papel dos discursos que articulam o poder e o saber. O discurso aparece em Foucault por exclusão das dicotomias, admitido ou não admitido, dominante e dominado, remetendo, ao contrário, a estratégias díspares enquanto sitio da multiplicidade de elementos discursivos, sem uniformidade ou estabilidade.  

Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder, reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições, mas também afrouxam seus laços e dão margens a tolerâncias mais ou menos obscuras[21].

A história da sexualidade é o objeto da investigação genealógica empreendida por Foucault em “a vontade de saber”, genealogia da moral, mais estritamente falando, pois se trata de, como mencionamos, a partir dos documentos do passado, retraçar a constituição do saber sobre o sexo desde as relações de poder e, no embate, de o saber produzido gerar novas relações de poder. Desse modo, há em Foucault uma implicação recíproca entre saber e poder que se objetiva nos discursos políticos, econômicos e da sexualidade. Analisar genealogicamente a sexualidade é precisar essas relações de poder-saber no decurso da história, apontando para o elemento fluido delas e para as estratégias que propagam os seus dispositivos.  Dentre elas, Foucault cita: a Histerização do corpo da mulher, enquanto processo mediante o qual o corpo da mulher foi analisado como corpo sexualizado e aparece como efeito de uma patologia intrínseca que coloca o corpo feminino na ordem das práticas médicas; posto ainda em relação com o corpo social, o corpo familiar e a vida das crianças. A Pedagogização do sexo das crianças em que a criança é posta como se dedicando a uma atividade sexual; a Socialização das condutas de procriação, que se configurou através do controle da fecundação dos casais; a Psiquiatrização do prazer perverso, quando o próprio instinto sexual é isolado enquanto biológico e psíquico a mercê de anomalias e requerente de tecnologias corretivas. O ponto alto do livro está, no item domínio, em mostrar que todas as estratégias, da histerização do corpo da mulher à psquiatrização do prazer perverso não são uma forma de inibir, controlar ou suspender a sexualidade, mas, de modo bem diverso, através das estratégias de poder-saber que ela se produz, isto é, surge como sexualidade.

Mas o que é poder e saber em Foucault? Essa questão já foi respondida, pois o poder é uma relação de forças diversa de uma substância e, por conseguinte, sem possibilidade de localização. Não é uma qualidade inerente a alguns e ausente em outros, mas uma rede presente em todas as instâncias. O saber envolve objetos, conceitos, adesões a teorias e congêneres, mas é, ao mesmo tempo, resultado de determinadas relações de poder que o produzem como saber e esse saber produzido gera novas relações de poder, confirmando a existência de uma implicação recíproca entre poder e saber em termos de constituição de um e de outro no decurso da história como palco das forças em luta constante.
 


[1] FOUCAULT, M. Ditos e escritos. Trad. Elias Monteiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, IV, p.174. (“Entretien sur la prison: le livre et sa méthode”. In. Dits et Écrits I – 1954-1975. Paris: Gallimard, 2001, p.1621.).
[2] Cf. FOUCAULT. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza Albuquerque e J. A. Albuquerque, 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003, p. 15-16. (Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2010, p. 18-19).
[3] Id, Ib., p. 16. (Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2010, p. 19).
[4] Id, Ib., p. 17. (Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2010, p. 21.)
[5] Cf. FOUCAULT, op. cit., p. 21. (Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2010, p. 25.)
[6] Id., Ib. ( Id. Ib., p. 25).
[7] Id., Ib., p.24.  (Id. Ib., p. 30).
[8] Id., Ib., p. 36. (Id., Ib. p. 49).
[9] Conf. FOUCAULT, op. Cit., p. 45. (Conf. FOUCAULT, op. Cit., p. 62)
[10] Id., Ib., p. 49. (Id., Ib., p. 67).
[11] LEBRUN, Gérard. A dialética passificadora. Almanaque, São Paulo: Brasiliense, n. 3, p. 33, 1977.
[12] FOUCAULT, FOUCAULT. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza Albuquerque e J. A. Albuquerque, 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003, p. 56. (Histoire de la sexualité I: la volonté de savoir. Paris: Gallimard, 2010, p. 76).
[13] FOUCAUL, op. Cit., p. 58. (Conf. FOUCAULT, op. Cit., p. 79).
[14] Id., Ib., p. 62. (Id. Ib. p. 84).
[15] Id., Ib., p. 67. p. 91.
[16] FOUCAULT, op. Cit., p. 87. (Conf. FOUCAULT, op. Cit., p. 120).
[17] Id., Ib., p. 89. (Id., Ib. p. 123).
[18] Id., Ib., p. 92. (Id., Ib. p. 128).
[19] FOUCAULT, op. Cit., p. 93. (FOUCAULT, op. Cit., p. 93. p. 129).
[20] Id. Ib., p. 94. (Id. Ib., p. 129).
[21] Id., Ib., p. 96. (Id. Ib., p. 133).
Autor: Vania D. Azeredo - Membro do GEN/USP (Grupo de estudos Nietzsche)