Modernismo e Pós-modernidade

Em A Condição pós-moderna, David Harvey, apresenta o percurso de passagem da modernidade para a pós-modernidade a partir da substituição do modelo fordista pelo da acumulação flexível, da ética pela estética, mas dá ênfase às transformações na compreensão dos conceitos de espaço e tempo como base de todas as demais alterações. Comecemos com a exposição de Harvey acerca dos conceitos de espaço e tempo, já que são estes últimos que expressam uma reorganização social, política e econômica que conferem uma irrevogabilidade, em termos de transformação existencial nos variados âmbitos da vida humana, manifestando e efetivando a ruptura com os padrões vigentes na modernidade. Trata-se de um tempo e de um espaço que passam por um processo de compressão transformador, de per si, das representações possíveis do mundo, ao mesmo tempo em que, gerador de uma diversidade de reações sociais, culturais e políticas. Simultaneamente condição e perturbação dos tempos pós-modernos, o conceito de compressão expressa a inevitável aceleração do modi vivendi mediante a compressão dos mundos espacial e temporal em que, efetivamente, vivemos e nos compreendemos como existentes. Compreensão e vivências essas que atravessam todos os domínios culturais e representativos possíveis e imagináveis.   

Mostrando-se centrado nas relações tempo-espaço como expressão direta dos tempos, o autor considera pertinente à Modernidade a vigência de certo “perspectivismo iluminista”, caracterizado por “um olho que vê” como atestado de verdade, isto é, o indivíduo vê e representa o mundo a partir do humano, distanciando-se, com isso, dos padrões da mitologia e da religião. Dado característico do advento do tempo e do espaço infinitos defendidos antes de Galileu e de Newton por Giordano Bruno. “... o pensamento iluminista operou nos limites de uma visão ‘newtoniana’ bem mecânica do universo, em que os absolutos presumidos do tempo e do espaço homogêneo formavam continentes limitadores do pensamento e da ação[1]. Na visão de Harvey, a visão perspectivista moderna assinala uma transformação na prática artística e arquitetônica, assim como nas atividades comerciais e na produção agrícola que terminaram por excluir o domínio religioso das atividades e das concepções humanas. O autor encontra evidências vinculatórias de regras perspectivistas com práticas racionalizadoras nos âmbitos do comércio, da atividade bancária e de contabilidade, assim como na produção agrícola. Mas já aparece como uma forma de controle e organização do espaço a sua ‘pulverização’ atestada no período iluminista através de seus economistas políticos nas doutrinas contrárias do mercantilismo e do liberalismo. Na leitura de Harvey, os pensadores iluministas, de um modo geral, dedicavam-se à questão da produção do espaço enquanto fenômeno econômico e político. Mas considerando não poder haver uma política desse tipo que independa das relações sociais. Dessa forma, a busca de uma sociedade melhor requeria uma ordenação do espaço e do tempo enquanto possibilidade de garantia tanto da liberdade individual quanto do bem-estar social.

Novamente a mudança fica determinada por um colapso nos conceitos de tempo e espaço absolutos que promove, consoante Harvey, as formas de modernismo do século XIX e do início do XX, mais especificamente, situando a crise geradora de crise em 1847-1848, quando se processou uma virada radical na representação do espaço-tempo e, por conseguinte, no seu sentido e reflexo na economia, na política e na cultura. O tempo recebe outro significado a partir de artistas e pensadores que se distanciavam dos pressupostos matemáticos do iluminismo.

Nesse sentido, o autor aponta como primeiro impulso cultural modernista a pintura de Manet, situada em Paris após 1848. Essa pintura, em especial, expressa a decomposição do espaço e do enquadramento tradicionais, além de passar a explorar modos fragmentários de luz e cor. Na mesma perspectiva, encontra-se a poesia de Baudelaire, transcendendo a condição efêmera em busca da eternidade e os romances de Flaubert, cujas narrativas apontam para uma ruptura com referência ao significado de tempo-espaço e as noções do presente, passado e futuro. Eventos e processos convergentes de percepção, apontando para um novo horizonte espacial e temporal culturalmente retratado na pintura, na poesia e no romance. Daí Flaubert, citado por Harvey, afirmar: “A ideia do futuro nos atormenta, e o passado não nos deixa avançar. Eis por que o presente foge de nossas mãos”[2]  

Em termos do que denominaremos como fato, no sentido de acontecimentos, Harvey aponta como marco do modernismo a expansão do comércio e do investimento exterior depois de 1850 – o que possibilitou percorrer o caminho para o imperialismo, marcado pela conquista imperial e pela dualidade interimperialista – que conduziram à Primeira Guerra Mundial. O autor aponta que entre 1850 e 1914 houve uma transformação radical no mapa que correspondia aos espaços do mundo. Ainda assim, podia-se ter uma compreensão dos conflitos simultâneos mediante a leitura do jornal matinal. As percepções do planeta e de sua superfície alteraram-se devido a viagens de balão, à fotografia e às novas tecnologias de informação. Houve, igualmente, nesse período, a organização de uma série de exposições mundiais que culminaram na exposição americana de 1893, como uma celebração da globalização. Parafraseando Benjamim, o autor refere-se à “fantasmagoria” manifesta no mundo globalizado da mercadoria e da competição entre Estados-nações. Há nesse processo uma subjugação do espaço e uma retomada do crescimento capitalista enquanto projeto.

Haja vista que a nova onda de compressão do tempo-espaço solapou o sentido da pintura e ficção realistas, manifestas por Émile Zola em La terre, ao apontar como a onda de influências internacionalistas de importações mais baratas induz ao enterro de localidades em termos de política e cultura paroquiais. De outra parte, os romances de James Joyce, ao requererem para o presente o âmbito da experiência efetiva, vêm expressar o clamor por apreendê-lo enquanto sentido de simultaneidade no tempo e no espaço. Na visão de Henri Lefebvre, citado em comentário por Harvey, em 1910 o próprio espaço foi abalado, porque a noção euclidiana de espaço deixou de ser sistema de referência juntamente com outros ‘lugares comuns’ como cidade, história, paternidade, a moralidade e o sistema tonal da música. Fatos apontados como essenciais remetem à teoria especial da relatividade (1905) e à teoria geral da relatividade (1913).

Outro dado é que foi em 1913 que Ford instalou a linha de montagem, fragmentando tarefas e redistribuindo o espaço com a intenção de aumentar consideravelmente a produção. Na perspectiva de Harvey, Ford organizou o espaço a fim de obter um aceleramento do giro do capital produtivo, objetivo atingido diretamente através de uma nova organização espacial da rede produtiva, que gerou uma aceleração do tempo. No mesmo ano, da Torre Eiffel é transmitido mundialmente o primeiro sinal de rádio. Esses acontecimentos reforçam a visão de Harvey acerca da compressão tempo-espaço como mantenedora ou transformadora das demais relações, já que, especialmente o sinal de rádio, faz o “espaço decair, na simultaneidade de um instante, no tempo público universal” [3].  É a universalidade e homogeneidade do tempo público no espaço.

Efetivamente, para Harvey, no modernismo o espaço sujeitava-se a propósitos humanos, isto é, havia um controle racional do espaço enquanto algo integrado na cultura moderna, que tinha por base a racionalidade, a técnica, a supressão da diferença e de limites espaciais vinculados a certo projeto histórico. Para ele, “os pensadores iluministas tinham postulado o bem-estar como sua meta” [4]. Central na história do modernismo é a oposição entre o Ser e o Vir a Ser, em termos políticos, enquanto tensão entre, de um lado, o sentido do tempo e, de outro, o foco do espaço. Situando essa luta depois de 1848, Harvey considera que o modernismo, tomado como movimento cultural, travou a luta com essa oposição de forma criativa. Ele menciona, inclusive, os papéis importantes que desempenharam o dinheiro, o lucro, a acumulação do capital e do Estado que se constituíram como o referencial a partir do qual as práticas culturais desenrolavam-se.  Desse modo, o surgimento do modernismo, assim como de seu vai e vem em termos espácio-temporais, tem relação direta com a própria mudança na experiência do espaço e do tempo. A partir da admissão da plausibilidade dessa tese, Harvey investiga o pós-modernismo ou a condição pós-moderna como uma nova versão da experiência do espaço e do tempo. Trata-se de um giro da compressão tempo-espaço.

Conforme a Condição pós-moderna de Harvey, as duas últimas décadas marcam uma fase de intensificação da compressão do tempo-espaço, cujo impacto, considerado pelo autor desorientado e disruptivo, atinge as práticas político-econômicas, o equilíbrio do poder de classe e a vida social e cultural como um todo. Como espécie de marco do modelo de produção, o autor apresenta a transição do fordismo para a acumulação flexível através da implantação de outras formas de organização e de novas tecnologias de produção. Invertendo o processo fordista de integração vertical, a desintegração dele, mediante subcontratações e transferências de sede, entre outros, gerou um novo curso na produção. Acresce-se a isso o sistema just-in-time, redutor, de per si, dos estoques, uma vez que produz pequenos lotes associados a novas tecnologias de controle eletrônico. Com relação aos trabalhadores, os mesmos tiveram seus processos de trabalho intensificados e a crescente desqualificação/requalificação para se adaptarem às exigências do mercado. Convém mencionar que, se a produção acelera, paralelamente, há uma aceleração na troca e no consumo. Tudo isso como resultante da compressão espaço-tempo em sua nova fase ou giro.

Nessa vertente compressora harveyana, encontra-se o caráter volátil e efêmero da moda, dos produtos, das técnicas de produção, dos processos de trabalhos e, inclusive, das ideias, das ideologias, dos valores e das práticas vigentes. As mercadorias encarnam o valor de instantaneidade suprimível, quer dizer, quanto mais descartável o produto melhor para o sistema. Trata-se do apogeu de uma sociedade de descarte, nos mais amplos âmbitos, já que nada é duradouro e permanente, mas, ao contrário, efêmero e fugidio. Em vista disso, não há para o autor a noção de planejamento em longo prazo, suprimida do mercado pela volatilidade que constitui seu fluxo. Mesmo o trabalhar requer a incorporação da volatilidade, bem como a aceleração do tempo de giro. Daí a busca crescente por planejamentos de curto prazo e de ganhos imediatos imperar no sistema atual, demandando um controle do gosto e da opinião.

As imagens transformaram-se em mercadorias, levando Jean Baudrillard (1981), parafraseado por Harvey[5], a considerar a análise marxiana da produção de mercadorias ineficiente e ultrapassada na atualidade, já que a imagem ao ser vendida como mercadoria faz com que a preocupação central do capitalismo seja a produção de imagens e sistemas de signos. Isso faz com que a imagem construída seja uma ferramenta indispensável na concorrência das empresas, levando o autor a analisar a importância do simulacro – uma réplica próxima da perfeição – na pós-modernidade. Na política são fabricadas imagens. Em outros domínios, como o da fabricação de antiguidades, aparecem réplicas tão perfeitas que tornam as fraudes inidentificáveis, e apresentam-se como um sério problema no mercado das artes. De outra parte, o próprio dinheiro, ao deixar de ser representação direta do valor, criou, no capitalismo, uma crise de representação. Tudo isso aponta para uma crise emergente de representação simbólica na atualidade. O simulacro, a cópia e a réplica detêm o valor, sem suporte de valor, lançando a contemporaneidade numa crise de representação e aporte representacional. Todavia, mesmo considerando que símbolos da sociedade como riqueza, poder e fama têm um valor exacerbado hodiernamente, Harvey considera possível uma análise de todos os fenômenos sociais pelo materialismo histórico a partir da compreensão das alterações situadas nos giros da compressão do tempo-espaço. Para o autor da Condição pós-moderna, as preocupações pós-modernas não estariam distantes da descrição marxiana, haja vista que o ato de valorizar o significante em detrimento do significado, o dinheiro em vez do trabalho social e os signos mais do que as coisas que representam, reforçam a posição de Marx concernente ao papel do dinheiro. Situando o móvel da crise no giro de compressão tempo-espaço, Harvey assinala as suas amplas dimensões.

No limite, na avaliação de Harvey, foi o giro acelerado da compressão tempo-espaço, notadamente a partir dos anos 60 e, mais precisamente, em algum momento entre 1968 e1972, que precipitou a civilização Ocidental na Pós-modernidade, isto é, nesse movimento que se descortina desde o antimodernismo dos anos 60. Se o espaço modernista era ligado às funções sociais e girava em torno delas, ele se torna autônomo na pós-modernidade, incorporando todo tipo de estratégias. Mas apesar dos reflexos e respostas inusitadas que lhe seguem, devido à efemeridade e fragmentação nos âmbitos da política, da vida privada e social, o motor da mudança de fase ou transformação remete a um processo histórico caracterizado pelo autor como “ondas sucessivas de compressão tempo-espaço” [6]. Essas transformações estiveram na base das mudanças de concepção do tempo e espaço na Modernidade, assim como na ruptura com ela.

A leitura de David Harvey permitiu-nos identificar os processos de ruptura que precedem ao advento do que ele denomina pós-modernidade; isto é, da substituição do modelo fordista pelo da acumulação flexível, o fim das formulações totalizadoras, o apogeu da sensibilidade e do desejo contraposto à objetividade, o reino do efêmero, do acidental e do volátil e, por fim, a compressão do tempo-espaço. Observe-se que o conceito de compressão constitui-se como base das demais transformações. É a aceleração do tempo e a fragmentação do espaço que levam tanto à substituição de um dado modelo quanto ao reinado da efemeridade. Harvey considera ser essa compressão responsável pelas mudanças que houve na passagem da Idade Média à Modernidade expressa no tempo e espaço infinitos, por um lado, e na representação do humano, por outro. Isto quer dizer que tanto a modernidade quanto a pós-modernidade são marcadas pelos processos de compressão do tempo-espaço.

A nosso ver, o recurso de Harvey a essa exposição visa salvaguardar a competência do materialismo histórico para avaliar os processos de continuidade e ruptura na sociedade, uma vez que compreende a pós-modernidade como condição histórico-geográfica desde o materialismo histórico, refutando assim a desqualificação dessa leitura para interpretar uma sociedade de signos e simulacros como a pós-moderna. Mediante tal caracterização, o autor obtém a possibilidade de analisar o fenômeno da condição pós-moderna com o aparato conceptual do materialismo histórico. Tal exposição permite, em um sentido acurado, rejeitar a posição de Baudrillard acerca das deficiências da análise marxiana em uma sociedade que produz signos. Afinal, um mercado de signos e uma sociedade de descarte remontam ao processo histórico material de ondas de compressão do tempo e do espaço, que se objetiva na idolatria do simulacro presente em nossa atualidade, no mundo cada vez mais globalizado do efêmero e do descartável. Ainda assim, é acessível à análise e à compreensão desde o devir da sua história processual, já que se trata de uma nova e diferente onda de um mesmo e maior processo histórico.

De modo diferente, Lyotard, em seu livro A condição pós-moderna, analisa “a posição do saber nas sociedades mais desenvolvidas”[7], uma vez que elas passaram a ser denominadas pós-modernas devido às transformações que se processaram na ciência, na literatura e na arte, modificando o estatuto da cultura como um todo.  Todavia, o autor não se detém em analisar as próprias transformações operadas nessas sociedades, mas faz um recorte temático que prioriza as transformações em sua relação direta com o que nomeia “crise dos relatos”.

Notadamente na Modernidade – entendida de Descartes ao final dos anos 50 – a filosofia constitui-se como o metadiscurso legitimador da ciência, haja vista que a crise da ciência, com seus próprios relatos, demandou uma necessidade de legitimação das regras de seu jogo. Esse discurso de legitimação que, enquanto recorre à “dialética do espírito, a hermenêutica do sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza, decide chamar-se ‘moderna’ a ciência que a isso se refere para se legitimar”[8]. Lyotard enfatiza a importância da legitimação do saber através do metarrelato, já que nos conduz a questionar não só a verdade do discurso, mas a validade das instituições, mostrando o vínculo existente entre justiça e verdade com o grande relato. Apesar de considerar simplificador, Lyotard considera “‘pós-moderna’ a incredulidade em relação aos metarrelatos”[9].  Daí a crise da filosofia metafísica e da Universidade, enquanto instâncias legitimadoras do discurso: “nasce uma sociedade que se baseia menos numa antropologia newtoniana (como o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) e mais numa pragmática das partículas da linguagem”[10].

Nessas sociedades, estão presentes muitos jogos de linguagem diversificados que remetem à heterogeneidade de elementos, cujos decisores, na visão de Lyotard remetem à legitimação social e a verdade científica ao critério de eficácia, reduzindo a vida ao aumento de poder. Considerando esse critério inconsistente sob muitos aspectos, notadamente, ao âmbito socioeconômico, e gerador de terror, mesmo que em graus diferenciados, uma vez que produz a máxima: “sede operatório ou desaparecerei”, Lyotard propõe-se a seguinte questão para o livro: “uma legitimação do vínculo social, uma sociedade justa, será praticável segundo um paradoxo análogo ao da atividade científica? Em que consistiria esse paradoxo?”[11].

Considerando como marco da denominada pós-modernidade a década de 50 do século XX, Lyotard parte da hipótese de que há uma mudança do estatuto do saber paralela ao ingresso da sociedade na fase pós-industrial e no advento da cultura pós-moderna.  Como o conhecimento passa a ser traduzido em quantidades e com o que se constata como sendo a hegemonia da informática impõe-se outra lógica que requer prescrições definidoras dos enunciados admitidos como sendo, efetivamente, “saber”. O saber deixa de ser um fim em si enquanto formação e converte-se em mercadoria, dado que ao perder seu valor de uso, converte-se em mercadoria de troca que assume a forma de valor enquanto tal. Há fornecedores e usuários do conhecimento, uma vez que, enquanto mercadoria é produzido para ser vendido.  Lyotard menciona que diversos fatores como a “reabertura do mercado mundial, a retomada de uma competição econômica ativa, o desaparecimento da hegemonia exclusiva do capitalismo americano, o declínio da alternativa socialista, a abertura do mercado chinês às trocas e outros fatores”[12] levaram os Estados a rever seu papel enquanto agente de planificação, tendo em vista que a alteração na natureza do saber tem reflexos diretos sobre os poderes públicos em sua relação com a sociedade civil.

A questão, justamente, do estatuto do saber vem a ser, a partir do problema da legitimação que se impõe a hipótese de trabalho de Lyotard. Convém mencionar, nesse sentido, que o saber científico não resume todo saber, haja vista que o mesmo tem ligado ao seu conceito o saber narrativo, enquanto mais relacionado às ideias de equilíbrio interior e convivialidade, termos de Lyotard, do que ao exercício de superioridade do narrativo sobre o científico.   O problema da legitimação pode ser visto desde a perspectiva da lei, que tem como enunciado a necessidade de os cidadãos desempenharem tal ou qual ação. Em termos de um enunciado científico, ele deve apresentar determinado conjunto de condições que nos levam a considerá-lo como científico.   Em ambos os casos, há um legislador, mas no primeiro, ele promulga a lei, enquanto no segundo, um “legislador” prescreve as condições para um enunciado ser integrado ao discurso científico e aceito pela comunidade científica. Na ótica de Lyotrad, a decisão acerca do que é verdadeiro não é completamente independente do que é justo. E isso desde Platão, pois há uma relação de entrosamento no gênero de linguagem que se denomina ciência, ética e política. Mas partindo-se da admissão que poder e saber são duas faces de uma mesma questão: “quem decide o que é saber, e quem sabe o que convém decidir? O problema do saber na idade da informática é mais do que nunca o problema do governo” [13].

A análise dessa problemática requereu de Lyotard a adoção de um procedimento.  Trata-se de investigar a questão considerando o que denomina de fatos de linguagem em seu aspecto pragmático. Tal procedimento é tributário dos jogos de linguagem de Wittgenstein enquanto centra sua atenção nos efeitos dos discursos. Com referência aos jogos de linguagem, faz três observações canônicas: 1) as regras constituem um objeto de contrato explícito entre os jogadores ao invés de legitimarem-se nelas mesmas; 2) o jogo só existe na presença de regras; 3) cada enunciado é considerado lance em um jogo. Nesse sentido, Lyotard introduz o conceito de agonística geral que faz com que o jogo dela provenha e com que jogar seja combater. Enquanto o vínculo social, como segundo princípio, é feito a partir de lances da linguagem, há uma agonística da linguagem que não pode ocultá-los. É através desses dois princípios que ele analisa a natureza do vínculo social na alternativa moderna e na perspectiva pós-moderna.

Lyotard vincula a reflexão acerca do saber na sociedade contemporânea mais desenvolvida a certa representação que dela se faz. Em vista disso e, grosso modo, apresenta dois modelos, quais sejam, a sociedade como um todo funcional e a sociedade dividida em duas partes, cujos autores mais destacados são Parsons e Marx. Denominando essa dupla representação da sociedade de “clivagem metodológica”, cuja proveniência remonta ao século XIX, Lyotard mostra que se produzem dois discursos sobre a sociedade que se situam ou na homogeneidade ou na dualidade inerente ao social,  entre o funcionalismo e o criticismo do saber. Daí haver um saber positivista e um crítico ou reflexivo ou hermenêutico. Ao primeiro cumpre responder ao sistema enquanto sua força produtiva indispensável, ao segundo cabe interrogar acerca de valores e fins. Todavia, o pensador francês não compartilha essa solução de divisão. Ao contrário, apresenta tal alternativa como não fazendo outra coisa a não ser reproduzir e não tendo, por isso, pertinência para a relação com as sociedades pós-modernas e seu saber, nas quais descreve mudanças radicais como as expostas na sequencia.

Considerando o caráter fundante da linguagem desde o nascimento da criança, cujos referentes históricos narrados e seus futuros deslocamentos a pressupõem, os jogos de linguagem passam a constituir-se como método geral de enfoque dessa sociedade, já que é uma relação exigida para que haja sociedade, ainda que nem toda relação seja um jogo de linguagem. A questão central é que o vínculo social é um jogo de linguagem para Lyotard e, em vista disso, é requerido para uma possível abordagem das instituições contemporâneas do saber. Daí a proposta lyotariana de compreender as relações sociais como uma teoria dos jogos que tenha presente o elemento agonístico como pressuposto necessário, ao invés de entendê-las como uma teoria da comunicação.

Ao tratar do saber nas sociedades mais desenvolvidas, Lyotard considera como sendo conhecimento “o conjunto dos enunciados que denotam ou descrevem objetos (...) suscetíveis de serem verdadeiros ou falsos”[14]. Ora, essa especificação é importante à medida que o autor toma a ciência como um subconjunto do saber ao invés de expressão da sua totalidade ou identidade, já que o saber envolve outras competências além da denotação, como a enunciação e a avaliação. Uma das questões centrais referentes ao saber é concernente à legitimidade dele. Apontando uma incomensurabilidade entre a pragmática narrativa popular, enquanto por si mesma legitimidade e a questão da legitimidade como jogo de linguagem do Ocidente, mostra como os relatos, ao mesmo tempo, apresentam critérios de competência e sua aplicação. Em termos de cultura, determinam o direito de dizer e fazer e estão legitimados por ser parte dela.

Lyotard examina duas versões dos relatos de legitimação do saber, uma política e outra filosófica. “Uma é que tem por sujeito a humanidade como herói da liberdade. Todos os povos têm direito à ciência”[15]. Nesse caso, o sujeito social deve ser o sujeito do saber científico, que busca sempre reconquistar o direito à ciência quando esse lhe é usurpado.  Esse tipo de relato tem sua orientação maior sobre o ensino primário, enquanto no ensino superior aparece o relato das liberdades à medida que o Estado assume o papel de formar o povo e direcioná-lo ao progresso sob a égide da nação. O outro relato de legitimação faz um tipo diferente de elaboração ao relacionar a ciência, a nação e o Estado. Datado, em certo sentido, da fundação da Universidade de Berlin, influenciará a organização dos cursos superiores nos séculos XIX e XX, notadamente nos países jovens.  

Sintetizado por Humboldt, o relato especulativo considera a singularidade da ciência, enquanto obedecendo a leis próprias, mas, ao mesmo tempo, ressalta que a Universidade deve estar voltada à formação da nação em termos morais e espirituais. É o que Lyotard considera de conflito entre jogos de linguagem diferentes, porque um é feito de denotações que emanam do critério de verdade e outro de enunciados que devem ser justos.  Todavia, os dois discursos são imprescindíveis à Bildung do projeto humboltiano que visa, simultaneamente, a aquisição de conhecimentos e a formação de um sujeito legitimado do saber e da sociedade. “... assegurando que a pesquisa das verdadeiras causas na ciência não pode deixar de coincidir com a persecução de justos fins na vida moral e política. O sujeito legítimo constitui-se desta última síntese”[16]. Na sequencia, ele acrescenta: “As escolas são funcionais; a universidade é especulativa, isto é, filosófica”[17].

Observe-se que essa caracterização da legitimação do discurso científico através da especulação e, portanto da Filosofia remonta ao discurso sintetizador moderno que reúne os conhecimentos dispersos em uma unidade. Daí Lyotard apontar para a noção de Sistema em Ficthe e Shelling, num primeiro momento, e para a Enciclopédia hegeliana em um segundo, enquanto metanarração racional no devir do espírito. Nesse caso, a narração da história do que o filósofo francês denomina sujeito vida termina por formular a legitimidade dos discursos, tanto no âmbito das ciências empíricas quanto da cultura popular. Para ele, o lugar desse metassujeito legitimador é a universidade especulativa. Nas regras do jogo de linguagem especulativo, os enunciados devem engendrar uns aos outros e a instituição exclusiva deles é a Universidade.

Mas, Lyotard, visando resgatar os germens da deslegitimação do saber no que denomina condição pós-moderna, aponta também para o outro modo do sujeito de legitimação como sujeito prático. Ainda tributário da modernidade, esse sujeito, diverso daquele que atualiza suas possibilidades do conhecimento, é a própria humanidade. Nesse sentido, ele afirma: “O princípio do movimento que anima o povo não é o saber em sua autolegitimação, mas a liberdade em sua autofundação ou, se se prefere, em sua autogestão”[18].  É um modo de legitimação que remete a Kant na afirmação da autonomia da vontade. Trata-se do jogo de linguagem que Kant chamaria imperativo enquanto na atualidade é denominado prescritivo. Em ambos os casos, a legitimação não é direcionada pela verdade de enunciados denotativos, mas pela justiça dos enunciados prescritivos à medida que prescrevem o que se deve fazer. Daí Lyotard afirmar: “O saber não é mais o sujeito, ele está ao seu serviço; sua única legitimidade (mas ela é considerável), é permitir que a moralidade venha a ser realidade”[19]. Nesse caso, o saber subordina-se completamente ao sujeito prático, pois sua legitimidade final está determinada pelos fins visados por esse sujeito que, enquanto coletividade autônoma, faz o saber servir aos seus fins. É isso que o filósofo francês denomina reencontro da função crítica do saber. Há um privilégio conferido aos enunciados prescritivos que os torna independente dos enunciados da ciência, uma vez que esses últimos convertem-se em informação para o sujeito prático. Tal ponto, Lyotard considera interessante por negar a totalização dos jogos de linguagem num metadiscurso.

A análise de Lyotard acerca da legitimação do saber torna-se instigante por assinalar as mudanças que se processaram com referência à própria legitimação na cultura pós-moderna, enquanto datada da segunda Guerra Mundial, no sentido de se processar a partir desse momento, um deslocamento da ênfase sobre os fins para a ênfase sobre os meios, assinalando o fim da credibilidade no relato seja ele especulativo ou de emancipação. Todavia, aponta que a crise dos relatos remonta ao século XIX e, portanto à modernidade enquanto geradora da crise de legitimação ou processo de “deslegitimação” e niilismo presentes nos grandes relatos da modernidade como seus germens. E isso que se processa, apesar das mudanças capitalistas e do avanço tecnológico, que têm reflexos no estatuto do saber, a ciência contemporânea, na visão de Lyotard, já sentia esses impactos anteriormente ao seu acontecimento.

 Lyotard mostra como os relatos especulativo e o de emancipação precipitam, desde as conexões internas que os define, a crise da legitimação. Ao considerar que a ciência positiva não é um saber, o relato especulativo hegeliano “contém nele mesmo (...) um ceticismo com relação ao conhecimento positivo”[20]. Ora, a decorrência necessária desse ceticismo embrionário é a desqualificação da ciência como verdadeira, já que, ao não encontrar sua legitimidade, ela é colocada no nível da ideologia. De outra parte, em considerando um sentido mais próximo da cultura pós-moderna, Lyotard apresenta as consequências de se aceitar o saber das ciências positivas como modo geral da linguagem. Essa linguagem implica pressuposições axiomáticas que devem sempre ser explicitadas. Nesse caso, “tem-se um processo de deslegitimação cujo motor é a exigência de legitimação” [21]. Assim o filósofo francês aponta para um problema interno do relato especulativo quanto ao princípio de legitimação do saber, cuja decorrência é a emancipação das ciências ao mesmo tempo em que se processa um afrouxar da trama enciclopédica. A crise do saber científico encontra na erosão do princípio de legitimação do saber sua proveniência.

Quanto ao procedimento de legitimação advindo do relato de emancipação, Lyotard o analisa e apresenta, igualmente, seu ponto interno de erosão. Nesse caso, trata-se do estabelecimento de uma implicação entre um enunciado descritivo e um prescritivo. À medida que o dispositivo de emancipação fundamenta a legitimidade da ciência através dos interlocutores da prática ética, social e política, isto é, da própria autonomia dos interlocutores, gera um problema de pertinência; pois a verdade do enunciado descritivo não implica a justiça do enunciado prescritivo, quer dizer, mesmo que a descrição da realidade seja verdadeira, isso não acarreta que o enunciado que viria a transformá-la seja justo. Daí Lyotard afirmar a impossibilidade de a ciência legitimar outros jogos que não o seu, uma vez que a prescrição está para além do seu domínio, mas ela não legitima a si mesma. Isto abre o caminho para uma corrente da pós-modernidade. Ainda assim, situa o percurso de “ataque”, mesmo que indireto, à legitimidade do discurso da ciência à divisão da razão em pura e prática por remeter a enunciados de regras autônomas e pertinências diversas.  Há uma proliferação de jogos de linguagem que parecem dissolver o sujeito social, pois o vínculo é de linguagem dando-se através de vários jogos obedecendo a regras distintas.

A análise de Lyotard acerca do processo de deslegitimação dos relatos permite vislumbrar a crise do saber, tanto em termos da filosofia quanto da ciência. Em ambos os casos, houve uma perda da hegemonia discursiva que remete a filosofia ao âmbito de si mesma e a ciência beirando a aplicação e o desempenho enquanto critério definidor. Todavia, na visão do autor francês, o que caracteriza as culturas pós-modernas é a compreensão de que a legitimação só pode advir da prática da linguagem e da interação comunicacional.  Novamente tributária de Wittgenstein, essa legitimação remete aos jogos de linguagem como outra possibilidade que não a do desempenho. O determinismo é a hipótese da legitimação pelo desempenho, mas o saber científico contemporâneo está em busca de uma superação do determinismo enquanto foco de sua crise. Consoante Lyotard, há pouca afinidade entre a busca de desempenho e a pragmática do saber científico pós-moderno. Outro traço importante da ciência pós-moderna é transformar a teoria de sua própria evolução em algo descontínuo e paradoxal, o que remeteu Lyotard a pensar em uma legitimação pela paralogia, haja vista que considera o princípio do consenso, enquanto critério de validação, como insuficiente e considera excluídos os relatos da dialética do espírito e da emancipação.  

A paralogia é apresentada pelo pensador francês como um lance, cuja relevância de imediato não é reconhecida, feito na pragmática dos saberes. Colocando a ênfase da pragmática científica no dissentimento, Lyotard apresenta o consenso como um horizonte que jamais será atingido, enquanto o paradigma posto no domínio científico é atravessado por alguma afirmação que desorganiza a ordem em que está posto. São novas regras de linguagem que determinarão o campo do saber à medida que ele é desestabilizado constantemente. Em vista disso, ele afirmar: “Transposta à discussão científica e colocada numa perspectiva de tempo, esta propriedade implica a imprevisibilidades das ‘descobertas’”[22]. Embora a pragmática científica esteja envolta em enunciados descritivos, a sua diferença pós-moderna consiste na exigência de regras no plano prescritivo, denominados por Lyotard metaprescritivos, já que determinam os lances que serão aceitos nos jogos de linguagem. A paralogia revela os enunciados metaprescritivos e a legitimação do saber se dá mediante a proposição de novos enunciados. O consenso não é um valor, mas a justiça o é, tornando necessário buscar outra prática da justiça que não a do consenso. Encontramos, então, a seguinte afirmação: “O reconhecimento da heterogeneidade dos jogos de linguagem é um primeiro passo nesta direção. (...) Orientamo-nos agora para multiplicidades de argumentações finitas”[23].


[1] HARVEY, D. A condição pós-moderna. Trad. Adail Sobral e Maria Gonçalves, São Paulo: Loyola, 1993, p. 229 (______ The Condition of PostModernity, Cambridge; Massachusetts: Blackwell, 1990, p. 252).
[2] FLAUBERT, 1979, p. 134 apud HARVEY, 1993, p. 240 (FLAUBERT, 1979, p. 134 apud HARVEY, p. 263).
[3] Idem, Ib. p. 242 (Idem, Ib. p. 266).
[4] Idem, Ib. p. 254 (Idem, Ib. p. 280).
[5] Cf. HARVEY, 1993, p. 260 (Cf. HARVEY, 1990, p. 287).
[6] HARVEY, D. A condição pós-moderna. Trad. Adail Sobral e Maria Gonçalves, São Paulo: Loyola, 1993, p. 276 (______ The Condition of PostModernity, Cambridge; Masssachusetts: Blackwell, 1990, p. 306).
[7] LYOTARD, J.-F. A condição pós-Moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, p. XV (LYOTARD, J.-F. La condition posmoderne. Paris: Minuit, 1979, p. 7).
[8] Idem, Ib. (Idem, Ib.).
[9] Idem, Ib. (Idem, Ib.)
[10] Idem, Ib. (Idem, Ib. p. 08).
[11] Idem, Ib. (Idem, Ib. p. 09).
[12] Idem, Ib. p. 06 (Idem, Ib. p. 09).
[13] LYOTARD, op. cit., p.14 (LYOTARD, op. cit., p. 20).
[14] Idem, Ib. p. 35 (Idem, Ib. p. 36).
[15] Idem, Ib. p. 58 (Idem, Ib. p. 54).
[16] Idem, Ib. p. 60 (Idem, Ib. p. 56).
[17] Idem, Ib. p. 61 (Idem, Ib. p. 54).
[18] Idem, Ib. p. 64 (Idem, Ib. p. 60).
[19] Idem, Ib. (Idem, Ib.).
[20] Idem, Ib. p. 70 (Idem, Ib. p. 64).
[21] Idem, Ib. p. 71 (Idem, Ib. p. 65).
[22] Idem, Ib. p. 112 (Idem, Ib. p. 99).
[23] Idem, Ib. p. 118 (Idem, Ib. p. 107).

Autor: Vania D. Azeredo - Membro do GEN/USP (Grupo de estudos Nietzsche)