Teoria do conhecimento (conceito)

A questão do conhecimento ocupa lugar central na investigação filosófica. Diz respeito a nós mesmos e ao mundo, quando perguntamos “O que podemos conhecer?” ou “Em que condições estamos justificados a acreditar que algo é o caso?”

Desafios céticos

Desde o início se apresenta um desafio relevante, proposto pelo cético, que põe em dúvida nossa capacidade de conhecer. Na filosofia antiga[i], os chamados céticos acadêmicos negavam que algo pudesse ser conhecido (apreendido) por nós. Segundo eles, nada conhecemos daquilo que comumente supomos conhecer acerca do mundo. Por sua vez, os céticos pirrônicos colocavam em dúvida até mesmo a visão de que o conhecimento é impossível. Caberia duvidar de tudo (exceto das aparências fenomênicas) e sempre suspender o juízo sobre como as coisas realmente são ou não são, visto que a toda asserção é possível opor outra de igual força persuasiva. Muitas foram as respostas às objeções céticas, cabendo aqui apenas indicar algumas. Como vimos, o cético acadêmico nega que possamos conhecer. Mas se nada podemos saber, também não podemos saber que o conhecimento é impossível. Para evitar qualquer resquício de dogmatismo, o cético pirrônico não dá assentimento a nenhuma proposição, nem mesmo àquela que afirma a impossibilidade do conhecimento. Trata-se de um desafio, não de uma tese que nega a possibilidade do conhecimento. No entanto, para que essa dúvida seja considerada plausível ou razoável, é preciso examinar quais são os pressupostos da posição cética. O ceticismo que pretende duvidar de tudo é, para Wittgenstein, manifestamente um contrassenso, uma tentativa de transgredir as precondições da linguagem. Com efeito, o próprio jogo da dúvida pressupõe que ela não se aplique de modo universal. Seguindo outro caminho, filósofos como Chisholm argumentam que não estamos justificados a pensar que os pressupostos dos cenários céticos[ii] são mais razoáveis do que as proposições em que acreditamos sobre objetos físicos familiares como casas e árvores. A estratégia utilizada para enfrentar o cético não consiste em tentar refutar (mostrar que é falsa) qualquer proposição possível ou imaginária que se oponha ao que pensamos conhecer, ou que implique alguma chance de erro.[iii] Se, de um lado, não há razões positivas para defender as engenhosas hipóteses céticas, de outro, também não estamos justificados a negá-las. Podemos concluir que, não havendo boas razões para as dúvidas céticas, não é descabido admitir, pelo menos inicialmente, que somos capazes de conhecer.

Cabe notar que nosso conhecimento do mundo não requer um padrão epistêmico tão elevado como a infalibilidade (a imunidade ao erro).[iv] Mesmo sendo falíveis, podemos, segundo Russell, “examinar e apurar nosso conhecimento comum mediante um escrutínio interno”, substituindo algumas crenças por outras mais sólidas e menos questionáveis. A mera possibilidade de erro em nossas crenças não nos condena à total ignorância ou à suspensão da crença em geral.[v] Podemos admitir a crítica a cada detalhe especial sem colocar em xeque o conhecimento como um todo. Em outra linha de raciocínio, alguns filósofos concluem que a suposição realista da existência do mundo exterior é mais razoável que as alternativas céticas que só admitem as aparências fenomênicas, pois proporciona uma explicação (e predição) melhor do mundo dos sentidos. Por exemplo, ao supormos que uma moeda tem a forma redonda, poderemos explicar como ela aparece em diferentes perspectivas. Seja qual for o resultado dessa disputa filosófica, é preciso reconhecer que as tentativas de rebater as investidas de diversos oponentes céticos conduziram, ao longo da história, a importantes revisões e correções dos projetos epistemológicos.

A definição tradicional de conhecimento e o problema de Gettier

Cabe também à epistemologia a tarefa de caracterizar a natureza do conhecimento, oferecendo uma análise adequada aos diversos usos do conceito. Segundo a definição tradicional, formulada e discutida no diálogo Teeteto de Platão, conhecimento é crença verdadeira justificada. Sendo p uma proposição, um sujeito S sabe (conhece) que p se e somente se: (1) S acredita que p, (2) p é verdadeira, e (3) p está justificada para S. Juntos, esses três requisitos constituem condição necessária e suficiente para a verdade da proposição “S sabe que p”.[vi]

Muitas vezes temos a atitude positiva de acreditar que p, mas sem sabermos que p.[vii] Além disso, mesmo que algumas de nossas crenças sejam verdadeiras, não temos conhecimento a menos que elas estejam acompanhadas de uma justificação racional.[viii] Assim, a justificação epistêmica é que distingue o conhecimento de uma mera opinião verdadeira, de um palpite feliz.[ix]

Em um pequeno artigo que se tornou clássico, Gettier apresentou, em 1963, dois contraexemplos relativamente simples em que crenças verdadeiras justificadas não são instâncias de conhecimento.[x] Foram feitas muitas tentativas de acrescentar uma qualificação para refinar a definição tradicional, mas nenhuma solução foi amplamente aceita. No entanto, a ausência de uma definição satisfatória não significa que não possamos identificar e distinguir exemplos genuínos de conhecimento. (Do mesmo modo como podemos decidir, sem uma definição geral, se um objeto é cadeira ou não.) Uma explicação das condições a serem satisfeitas para que tenhamos conhecimento ou crença justificada, ao mesmo tempo “moderada e crítica”, deverá evitar dois casos extremos: nem o ceticismo que tudo (ou quase tudo) exclui, nem o dogmatismo que amplia demasiadamente o escopo do que considera ser nosso conhecimento.

Níveis de justificação epistêmica

A avaliação epistêmica de uma dada proposição, para um sujeito S, pode ser feita segundo diferentes categorias, em uma estrutura hierárquica.[xi] Diz-se que uma proposição p é provável para S se a crença em p está mais justificada para S do que a crença na negação de p. Ou seja, quando p tem alguma presunção em seu favor para S. É provável que seja vermelha a bola extraída aleatoriamente de uma caixa com exatamente dez bolas vermelhas e nove bolas brancas. Em uma escala mais elevada de justificação, situam-se as proposições que estão além da dúvida razoável, isto é, aquelas em que a crença em p está mais justificada do que a suspensão da crença em p.[xii] (Suspender a crença em p significa não acreditar em p nem em sua negação.) Por exemplo, a crença de um detetive, apoiada em várias linhas de provas e testemunhas, de que o mordomo é o autor do crime pode estar mais justificada do que a suspensão dessa crença.[xiii] (Não se deve confundi-la com a condição mais forte de indubitabilidade, que significa estar além da dúvida logicamente possível.)

No entanto, o conhecimento requer que a justificação tenha um status epistêmico ainda maior, suficiente para atingir o nível da evidência: a proposição p é evidente se e somente se (1) p está além da dúvida razoável e (2) a crença em p é pelo menos tão justificada quanto a suspensão da crença em qualquer outra proposição q. Por exemplo, em certas condições, é evidente para mim que agora estou percebendo que algo é uma árvore. (Ainda assim não está excluída a possibilidade de erro.) Por fim, o padrão máximo de justificação é a certeza: requer que (1) a proposição p seja evidente e que (2) não exista nenhuma outra proposição q tal que a crença em q esteja mais justificada do que a crença em p. Entretanto, não seria de bom senso exigir que todo tipo de conhecimento tenha o mais elevado status de justificação. Nossa percepção de objetos físicos é um caso em que podemos atingir a evidência (e o conhecimento), mas não a certeza, visto que estamos mais justificados a acreditar em proposições sobre as quais temos certeza, como “Todo quadrado é retângulo” ou “Penso que existo”.

Fundacionismo e coerentismo

Como vimos, o conhecimento requer justificação. Ou seja, conhecemos somente se as proposições em que acreditamos estiverem justificadas para nós. Importa então examinar as condições para que uma proposição esteja justificada para um sujeito S.

Encontram-se na filosofia diferentes teorias da justificação epistêmica. De acordo com o fundacionismo, algumas de nossas crenças justificadas são básicas e servem de fundamento a todas as demais crenças justificadas. Nessa estrutura, as crenças básicas justificadas constituem, por assim dizer, as fundações da pirâmide do conhecimento e a justificação delas não deriva de outras crenças. Elas se justificam de modo direto e imediato. Por sua vez, a justificação das crenças não-básicas é indireta e mediata, pois depende inteiramente de outras crenças justificadas nas quais assentam. Em última análise, a justificação das crenças não-básicas se deve às crenças  básicas justificadas que lhes servem de apoio.

Os defensores do fundacionismo argumentam que se a justificação de uma crença sempre dependesse de outra crença, em uma relação assimétrica de apoio, seríamos levados a uma regressão infinita ou a uma circularidade. Portanto, é preciso que essa série ou cadeia de justificações tenha término em alguma crença que não esteja justificada com base em outra crença.

Colocam-se duas questões relevantes: (1) “Como se justificam essas crenças básicas?” e (2) “De que modo as crenças justificadas transmitem a justificação a outras crenças?”

São dois os exemplos clássicos de crenças básicas justificadas. Em ambos os casos, atinge-se o grau máximo da certeza.[xiv] De um lado, estão as proposições a priori, ou verdades da razão, como “Tudo que é vermelho é colorido”. Também são casos típicos de proposições a priori as verdades da matemática e da lógica. Ao compreender uma proposição a priori, podemos ter conhecimento de sua verdade de modo independente da experiência. E nenhuma evidência empírica pode se opor a ela.[xv]

De outro lado, estão as proposições sobre nossos próprios estados mentais no presente instante, como pensar, imaginar, desejar, esperar, recear, sentir etc. Chisholm diz que esses estados se autoapresentam, no sentido de que, quando nos encontramos nesse estado, é evidente para nós que nos encontramos nesse estado. Para justificar a proposição “Eu imagino que João possua um Ford”, basta que eu reflita sobre meus estados conscientes. Outro exemplo é a proposição “Aparece-me que há um copo sobre a mesa”. Ela diz respeito ao modo como as coisas me aparecem e não ao modo como as coisas são. Essa apreensão básica está justificada para mim ainda que de fato nenhum copo esteja sobre a mesa.

A segunda questão diz respeito aos princípios epistêmicos de acordo com os quais uma proposição deriva sua justificação a partir de outras proposições.  Suponhamos que eu já tenha adquirido vários conhecimentos que formam meu conjunto de evidência total. Suponhamos também que, ao olhar pela janela de um lugar pouco familiar, algo me apareça como uma árvore. Posso tomar que existe algo que é uma árvore, mas não estar percebendo (sabendo) que existe uma árvore. Eu poderia, por exemplo, ter ingerido um medicamento que muitas vezes provoca alucinações visuais. Ou poderia ter visto um holograma de árvore, em vez de uma árvore. Mas se não houver em minhas evidências anteriores nenhuma proposição que “sobrepuja” a proposição de que percebo que existe uma árvore, então é evidente para mim que percebo que existe uma árvore. Nessa situação, é mais razoável incluir em meu corpo de evidência total a proposição de que percebo que existe uma árvore do que não incluir tal proposição.

Uma situação análoga se passa com a memória.[xvi] A memória pode me enganar, mas, em certas condições favoráveis, é possível justificar uma proposição sobre o passado (especialmente sobre o passado imediato) a ponto de estar além da dúvida razoável. Por outro lado, não temos conhecimento quanto ao futuro, mas nossas previsões também podem estar além da dúvida razoável ou oposição, especialmente após a repetição de muitos casos semelhantes, “sem que jamais se tenha encontrado exemplo de falha ou irregularidade”. [xvii]

O coerentismo se apresenta como uma alternativa à epistemologia fundacionista. Entende-se que nada conta como razão para se manter uma crença, a não ser outra(s) crença(s). Em um sistema coerente, as crenças são consistentes entre si e interligadas, recebendo e emprestando apoio, em maior ou menor grau.[xviii] Elas se associam e se sustentam mutuamente, como uma balsa que flutua livre de âncora e de amarras.[xix]

Um exemplo clássico é o diagnóstico médico em que todos os sintomas concorrem juntos para o fato de que o paciente está com uma determinada doença (o sarampo, por exemplo). Acrescentar à descrição desses sintomas a afirmação de que o paciente está com sarampo resulta em aumento da coerência. Mas afirmar que ele está com dengue não leva a um resultado positivo para a coerência. Portanto, é mais razoável eu acreditar que o paciente está com sarampo do que acreditar que ele está com dengue, considerando as informações relevantes disponíveis. A justificação se dá pela coerência com o corpo de proposições que aceitamos (acerca dos sintomas, nesse caso). Uma resposta à objeção cética pode seguir o mesmo caminho: a suposição de que agora estou sonhando ou tendo uma alucinação ou sendo vítima de um gênio maligno não é coerente com meu sistema básico de crenças, embora seja logicamente possível. É mais razoável supor a existência de objetos físicos do mundo exterior.

Dentre as proposições que aceitamos, encontram-se também aquelas que dizem respeito a nós próprios como agentes de uma investigação, quando tomarmos como dignos de crédito nossos esforços para conhecer o mundo e evitar o erro. Reconhecemos que em certas circunstâncias somos levados ao erro e buscamos corrigir e aprimorar nosso corpo de crenças a partir de dentro dele. Admitir que a percepção e a memória são falíveis não implica que seria razoável, na maior parte do tempo, acreditar que não podemos confiar nessas fontes.[xx]

Do ponto de vista do coerentismo, a famosa metáfora de Neurath ilustra a situação em que nos encontramos na busca do conhecimento: “Somos como marinheiros, que têm de reconstruir seu navio em mar aberto, sem jamais poder decompô-lo em uma doca e erigi-lo novamente a partir de suas melhores partes.” São mudanças graduais, em que substituímos uma parte por outra, mantendo o resto como apoio, que levarão a um novo navio.

Internalismo e externalismo

As teorias do conhecimento fundacionista e coerentista examinadas analisam a justificação epistêmica a partir de nossos estados mentais, aos quais temos acesso pela reflexão. São internos à perspectiva do sujeito, como é o caso da crença e da experiência sensorial. Essas concepções são chamadas internalistas, pois consideram que é acessível ao sujeito (por introspecção) aquilo lhe que permite justificar uma crença. Para o coerentista, importa apenas o apoio mútuo entre as crenças. Para o fundacionista, é preciso considerar também o que nos aparece pelos sentidos e as verdades a priori da razão.

Nas concepções externalistas, pelo contrário, a justificação depende de fatores externos aos quais nós podemos não ter acesso cognitivo. Uma crença pode ser considerada justificada porque chegamos a ela mediante um processo confiável de formação de crenças, isto é, um processo que tem grande êxito na produção de crenças verdadeiras (mesmo que não acreditemos ou saibamos que o processo é confiável). Isso se dá, por exemplo, quando a crença se relaciona de modo causalmente apropriado com o fato em que se acredita.

Em condições normais, a percepção da cor de uma parede é um processo cognitivo confiável em nosso mundo, pois produz crenças verdadeiras a maior parte do tempo. (O mesmo não se dá com as crenças formadas pelo pressentimento ou pela fantasia, por exemplo.) No entanto, não basta que o processo seja confiável. Devemos acrescentar a cláusula de que não exista outro processo disponível também confiável que possa afetar negativamente essa crença. É o caso quando notamos que luzes coloridas são lançadas sobre a parede e sabemos que elas podem alterar a cor que nos aparece em circunstâncias normais.

Epistemologia da virtude

Segundo Sosa, a avaliação epistêmica de uma crença envolve dois diferentes aspectos. Para que uma crença seja apta é preciso que resulte de um processo cognitivo confiável de um sujeito motivado por virtudes intelectuais que permitam, na maioria das vezes, alcançar a verdade e evitar o erro, em determinado contexto.[xxi] Essas virtudes ou competências intelectuais podem estar em nossas faculdades (acuidade da percepção, boa memória etc.) ou em nossos traços de caráter (mente aberta a novidades, determinação para levar adiante uma investigação etc.). Nesse sentido, podemos dizer que uma criança tem crenças aptas acerca de objetos físicos em situações comuns. Mas para que uma crença esteja justificada é preciso que se ajuste de modo coerente a outras crenças e aos princípios da perspectiva epistemológica do sujeito. Nesse caso, não temos apenas um conhecimento animal, mas um conhecimento reflexivo.

À semelhança da ética, a epistemologia tem uma dimensão normativa que se perde quando a noção de justificação epistêmica é definida apenas em termos de processos confiáveis ou de conexões causais.[xxii] Se tratarmos o conhecimento como um fenômeno natural, a ser explicado pela psicologia e pela neurofisiologia, não seremos capazes de responder às questões tradicionais da epistemologia. Para julgar se nossas crenças estão justificadas, devemos estar cientes de quais são os processos que seguimos e ter boas razões para acreditar que sejam corretos.


Leituras Sugeridas

1) Audi, R. Epistemology. Nova York: Routledge, 1998.

2) Bolzani Filho, R.  Acadêmicos versus pirrônicos. São Paulo: Alameda, 2013.

3) Chisholm, R. Theory of knowledge.  Englewood Cliffs: Prentice-Hall, terceira edição, 1989. (A tradução brasileira, publicada pela Zahar Editores, utiliza a primeira edição, de 1966.)

4) Dancy, J. Epistemologia contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1990.

5) Dutra, L. H.  Introdução à epistemologia. São Paulo: Editora Unesp, 2010.

6) James, W. A vontade de crer. São Paulo: Loyola, 2001.

7) Lehrer, K. Theory of knowledge. Boulder: Westview Press, 1990.

8) Lemos, N.  An introduction to the theory of knowledge. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

9) O’Connor, D. & Carr, B. Introduction to the theory of knowledge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1982.

10) Pereira, O. P. Vida comum e ceticismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

11) Russell, B. Nosso conhecimento do mundo exterior. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1966.

12) Russell, B. Os problemas da filosofia. Lisboa: Arménio Amado Editor, 1977.

13) Sosa, E.  Epistemologia da virtude. São Paulo: Loyola, 2013.

14) Sosa, E. Conhecimento reflexivo. São Paulo: Loyola, 2013.

A tradução do artigo de Gettier e de outros importantes textos de epistemologia se encontra no site:   < http://criticanarede.com/epistemologia.html >


Questões dissertativas

  1. Qual é a relevância do ceticismo no debate filosófico sobre o conhecimento?
  1. Mostre que, nos dois casos examinados no artigo de Gettier, Smith está justificado a acreditar em uma proposição falsa.
  1. É possível que uma proposição verdadeira não esteja justificada?
  1. Podemos saber que não estamos em um mundo de sonho gerado em computador, como aquele representado no filme “Matrix”?
  1. O que podemos saber sobre o futuro? E sobre o passado de muitos séculos atrás?
  1. Explique por que, para o fundacionista, se algo é provável para S, então S tem alguma certeza.
  1. Em que condições o testemunho de uma pessoa pode transmitir conhecimento?
  1. Apresente um exemplo em que três proposições a, b e c se apoiam mutuamente. Isto é, em que (1) a é provável em relação a b e c, (2) b é provável em relação a a e c, e (3) c é provável em relação a a e b.
  1. Qual é a diferença entre a justificação epistêmica de uma crença e a explicação científica de sua formação? A história natural de uma crença importa para a sua justificação?
  1.  Uma tentativa de resolver o problema de Gettier consiste em acrescentar, como quarta cláusula, que (4) não existe outra proposição verdadeira q tal que, se S estivesse justificado a acreditar em q, então S não estaria justificado a acreditar em p. Em cada um dos casos examinados por Gettier, quais seriam as proposições verdadeiras q tais que, se estivéssemos justificados a acreditar nelas, não estaríamos justificados a acreditar em p?

 


[i] Para um estudo do ceticismo antigo, sugerimos a leitura dos livros “Vida comum e ceticismo”, de Oswaldo Porchat Pereira, e “Acadêmicos versus pirrônicos”, de Roberto Bolzani Filho.

[ii] Por exemplo, a hipótese cartesiana de um gênio maligno “que põe toda a sua indústria em me enganar” ou, na versão contemporânea, a suposição de que somos cérebros em uma cuba estimulados por um computador que produz uma ilusão perfeita da realidade.  Além, é claro, dos clássicos argumentos do sonho e da alucinação. O cético não se atém apenas a exemplos de erros reais cometidos no passado, quando pensávamos conhecer e depois descobrimos que estávamos enganados. Considera também os erros possíveis ou imaginários aos quais estaríamos sujeitos nas condições epistêmicas em que nos encontramos agora.

[iii] Segundo Russell, o ceticismo universal (segundo o qual a dúvida é possível em relação a todo nosso conhecimento), “conquanto logicamente irrefutável, é praticamente estéril; só pode, portanto, trazer certa hesitação a nossas crenças, e não pode ser usado para substituí-las por outras”.

[iv] Chisholm questiona se o cético poderia, de modo consequente, se valer de alguma informação sobre a falibilidade humana.

[v] Segundo Hume, nossa crença de que o fogo queimará não pode ser enfraquecida por uma desconfiança geral ou por uma suspeita cética. A partir de uma longa sucessão de experiências uniformes, somos levados pelo hábito (pela natureza humana) a projetar para o futuro a ocorrência de acontecimentos em conjunção constante.

[vi] Há vários tipos de conhecimento ou saber. Entenderemos aqui o conhecimento no sentido proposicional: “Eu sei que p”, sendo p uma proposição.

[vii] A firmeza de uma crença, a profunda convicção subjetiva que me faz insistentemente afirmá-la, em nada contribui para torná-la devidamente justificada. Não mais do que um murro na mesa, para utilizarmos uma expressão de Popper.

[viii] Trata-se aqui de uma justificação epistêmica, não de uma justificação prática ou moral.

[ix] Uma proposição pode ser verdadeira sem estar justificada, e pode estar justificada sem ser verdadeira. Além disso, pode estar justificada para uma pessoa e não para outra. Por outro lado, a verdade é “estável”. A proposição “A neve é branca” é verdadeira se e somente se a neve é branca. Não importa se S acredita nela ou não, ou se ela está justificada para S ou não.

[x] Podemos assim resumir um dos casos examinados por Gettier. Suponhamos que Smith e Jones sejam candidatos a uma vaga de emprego. Suponhamos também que Smith tenha fortes evidências de que Jones conquistará a vaga e de que Jones tem dez moedas em seu bolso. Assim, Smith está justificado a acreditar que é verdadeira a proposição: (a) A pessoa que conquistará a vaga tem dez moedas em seu bolso. Para sua surpresa, o próprio Smith conquistará a vaga. E, sem que ele saiba, Smith tem dez moedas em seu bolso. Desse modo, Smith tem crença verdadeira justificada em (a), mas não sabe que (a) é verdadeira. A proposição (a) é verdadeira em virtude do número de moedas no bolso de Smith, sem que ele saiba quantas são, e ele baseia sua crença em (a) nas evidências sobre as moedas no bolso de Jones, que ele falsamente acredita ser a pessoa que conquistará a vaga. (Sugerimos a leitura do artigo de Gettier, no qual se encontra outro contraexemplo.)

[xi] Seguimos aqui a classificação proposta por Chisholm em “Theory of knowledge”, terceira edição.

[xii] A um cético pirrônico, parece que é mais razoável suspender a crença do que acreditar, quando considera que todas as proposições possam ser contrabalançadas nas tentativas de justificação. Essa atitude prudente evita que se tenha uma crença não justificada. Em resposta ao cético, afirma-se que, além de não cair em erro desnecessário, é preciso também buscar o conhecimento, a crença justificada. Segundo William James, “precisamos conhecer a verdade” e “precisamos evitar o erro” são duas leis separadas, não sendo adequado tomar a segunda como fundamental e mais imperativa. O cético “submissamente obedece” ao medo de errar e com isso perde “a chance de fazer uma suposição verdadeira”.

[xiii] Em uma categoria entre o que é provável e o que está além da dúvida razoável, encontram-se as proposições aceitáveis: aquelas em que a crença em p é pelo menos tão justificada quanto a suspensão da crença em p. Ou seja, em que a suspensão da crença em p não é mais justificada que a crença em p.

[xiv] No fundacionismo clássico, requer-se a infalibilidade do conhecimento, de modo que, ao saber que p, S não poderia estar em condição de errar acerca de p. No entanto, o falibilismo pode ser admitido em versões moderadas de fundacionismo, nas quais a justificação de uma proposição não exclui a possibilidade de sua falsidade.

[xv] Por sua vez, a crença razoável em uma proposição a posteriori requer evidências empíricas. A experiência pode se opor a uma proposição a posteriori.

[xvi] Cabe notar que várias coisas podem acontecer quando nos referimos à memória. Pode se tratar de um hábito (“Eu me lembro como voltar da escola para casa.”), de um evento do qual eu mesmo tive experiência (“Eu me lembro de que conversei com meu pai ontem à noite.”) ou de um fato passado (“Eu me lembro de que Salvador foi capital do Brasil.”). Uma questão clássica é se nosso acesso ao passado se dá diretamente ou mediante alguns traços adquiridos anteriormente que ligam o passado ao presente.

[xvii] Uma análise detalhada dos princípios epistêmicos normativos sobre a transferência da justificação, em diferentes níveis, se encontra no livro de Chisholm.

[xviii] A coerência envolve consistência lógica e probabilística, mas não apenas isso. Depende também do número e da força das conexões internas e explicativas, da unidade do corpo de crenças, do modo como as crenças se formam (sem violar princípios de racionalidade). Quanto a este último ponto, a fábula “A raposa e as uvas” retrata um caso emblemático de processo enviesado em que as crenças são modificadas apenas para se reduzir o peso do insucesso.

[xix] A crítica fundacionista da regressão infinita ou da circularidade não se aplica a esse caso, pois não se trata de uma cadeia linear de justificação, mas de uma relação com a totalidade das crenças.

[xx] O fundacionismo e o coerentismo muitas vezes não se apresentam em sua forma pura, mas se combinam entre si, dando mais ênfase a um aspecto ou a outro. É o caso do coerentista que admite o papel da experiência perceptiva na periferia do sistema, ou do fundacionista que considera relevante a coerência com o corpo de evidência total.

[xxi] Na ética da virtude, não se entende que o agente é virtuoso pelo fato de que realiza boas ações. Pelo contrário, entende-se que, por estar de posse de virtudes morais, ele atinge o bem. Como os arqueiros habilidosos que miram o alvo, na comparação de Aristóteles. Algo semelhante podemos encontrar na epistemologia da virtude de Sosa.

[xxii] Muitos filósofos reconhecem que deveria haver uma cooperação, uma via de mão dupla, entre a epistemologia e a ciência. O que muitas vezes se questiona é a tentativa de eliminar totalmente a epistemologia tradicional em favor de um naturalismo radical.


Autoria: Caetano Ernesto Plastino, professor do Departamento de Filosofia da USP.