A dimensão metafísica da revolta

"A revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem se insurge contra a sua condição e contra a criação."[1] Já vimos que a passagem do absurdo à revolta é também a passagem do indivíduo que põe para si a questão do suicídio à instância coletiva, para a qual é posta a questão do assassinato. Se entendermos que a condição metafísica do pensamento é a posição da subjetividade perante a condição humana tornada questão, teremos que admitir que o problema do suicídio, no Mito de Sísifo, já se colocava nessa dimensão, pois era enunciado claramente como o problema filosófico mais importante. Ainda assim era posto como um problema individual, com ênfase na reação do homem perante um mundo absurdo. A revolta é a assunção consciente de uma posição diante desse estado de coisas na medida em que ele constitui a própria condição humana. A diferença, portanto, é que o absurdo, além de constituir um estado de coisas posto diante da subjetividade, provoca uma definição da condição humana, isto é, provoca uma resposta não apenas em termos de situação reativa, mas de compreensão da condição humana naquilo que ela deve ter de mais característico. É neste sentido que Camus define a revolta como um movimento contra a condição humana e contra a criação.

Isso não significa subordinar a condição humana à criação, assumindo a concepção do ser humano como criatura no sentido filosófico-teológico. Criação tem aqui o sentido de remeter a condição humana, tal como ela se coloca para o homem revoltado, a uma instância causal indefinida, acentuando assim o seu caráter originalmente incompreensível. Neste mistério originário estaria incluída a sua inaceitabilidade. A revolta é o movimento do homem que se insurge contra a sua condição. Isso quer dizer que a compreensão da condição humana, tanto quanto a podemos ter, não é um saber neutro, já que se constitui ao mesmo tempo como uma reação contra aquilo que se constata. Saber e não aceitar fazem parte de um mesmo gesto, e nesse movimento o saber não se completa, posto que nunca chegarei a compreender por que a minha condição é tal como eu a apreendo e a vivo. Criação significa que me encontro no mundo numa determinada condição na qual está incluído o movimento de revolta contra essa própria condição e contra os motivos desconhecidos que a geraram. Se o ser humano pode chegar a algum grau de auto-conhecimento, isso só pode ocorrer no estado de revolta, que traduz o cerne de sua condição.

Daí a simetria entre absurdo e suicídio e revolta e assassinato. Assim como o suicídio pode ser a reação lógica ao mundo absurdo, o assassinato pode ser também uma reação lógica à injustiça que o homem revoltado constata no mundo. No entanto, como já vimos, a existência não é o império da lógica. Assim como, diante do mundo absurdo, o homem opta por viver, assim também, diante da injustiça, o homem revoltado opta por não matar. Em ambos os casos se contraria a lógica, em ambos os casos se trata de contradição. A aceitação da contradição é a originalidade do que propõe Camus tanto no  Mito de Sísifo quanto no Homem Revoltado. Observar essa contradição é importante porque ela é definidora de um certo modo de existir: enfrentamento do absurdo e enfrentamento da injustiça. Aquele que não suicida opta por não ser coerente com a constatação do absurdo; aquele que se recusa a matar opta por não ser coerente com a revolta despertada pela injustiça. Em ambos os casos, recusa-se a anular o homem, seja por causa de sua situação absurda, seja devido às injustiças que os homens cometem entre si.

Essa opção é feita em nome de um valor, que nos faz preferir a contradição à coerência. O valor da vida, a minha e a dos outros, é que justifica, embora não logicamente, a opção pela vida. A passagem do  Mito de Sísifo ao Homem Revoltado é a descoberta da identidade entre a minha vida e a do outro, ambas consideradas, então, do mesmo valor. No fundo do sentimento de revolta estão aspirações à unidade e à clareza do mundo, à ordem e à justiça. São essas aspirações que alimentam a lógica que pode fazer da morte a consequência da revolta. Pois algumas vezes é coerente que, para eliminar a injustiça seja necessário eliminar aqueles que a praticam. O revoltado é aquele que quer restabelecer a unidade, a totalidade, a racionalidade e a justiça. São essas aspirações que o levam a recusar a sua condição, e a contrapor-se à criação, isto é, ao poder desconhecido que teria originado essa condição. É claro que que essa posição da revolta tem algo a ver com o niilismo enquanto fenômeno que inclui a morte de Deus. Digamos que, num deismo clássico,  a realização daquelas aspirações é de alguma maneira garantida por Deus, mesmo que por vias nem sempre inteiramente compreensíveis para a mente humana. Uma das características do niilismo é que a morte de Deus acarreta o desmoronamento do fundamento dos valores implicados naquelas aspirações. No entanto, e ainda que paradoxalmente, elas continuam valendo, e agora será o homem que terá de lhes fornecer sustentação. Essa emancipação humanista inclui para Camus um terrível risco, inerente à perda, por parte do ser humano, da consciência de suas limitações. "Deerubado o trono de Deus, o rebelde reconhecerá essa justiça, essa ordem, essa unidade que em vão buscava no âmbito de sua condição, cabendo-lhe agora criá-las com as próprias mãos e, com isso, justificar a perda da autoridade divina."[2] O que se deve perguntar é se o "império dos homens" deve ser uma consequência direta do niilismo, ou se este ardor humanista significa justamente uma distorsão do niilismo. Camus procura mostrar que o revoltado que pretende se substituir a Deus trai as origens do niilismo e da revolta.

Isso nos mostra  quanto o sentimento de revolta é tributário da noção judaico-cristã de Deus. Para que a revolta exista, para que o homem possa insurgir-se radicalmente, contestar e protestar em toda profundidade, é preciso que o deus a que se dirige esse protesto seja unica e inteiramente responsável pela relação entre dor e condição humana. É preciso que ele seja "criador". É preciso que ele represente unicamente o Bem, para que o Mal apareça com toda a força absurda da sua incompreensibilidade. O Mal é absurdo porque não há como compreendê-lo senão remetendo-o à bondade infinita de Deus. Pois o Deus cristão não ajusta o universo segundo o bem e o mal: o mal lhe é absolutamente contrário, a ponto de o considerarmos como o não-ser. Na verdade, não pode haver tensão entre o bem e o mal num universo criado e governado pelo Deus do Bem. É esta ausência de equilíbrio tenso entre contrários que distingue o universo ético cristão do mundo grego, em que os deuses ajustavam a felicidade e a desgraça no traçado dos destinos humanos. Por isso não havia oposição irreditível entre culpa e inocência - entre bem e mal. Daí a dificuldade de se afirmar, por exemplo, se Édipo é inocente ou culpado. Os deuses estão tão longe quanto próximos dos homens, e essa ausência de uma transcendência radical é que faz da diferença uma tensão entre opostos. "A reflexão grega, esse pensamento com duas faces, deixa quase sempre correr ao fundo, em contracanto às suas melodias mais desesperadas, a palavra eterna de Édipo que, cego e desgraçado, irá reconhecer que tudo vai bem."[3] A própria infelicidade humana se constrói num espaço de transitividade em que o homem pode clamar aos deuses mas não revoltar-se contra eles. É preciso que Deus se torne tão pessoal quanto radicalmente distante para que se possa revoltar-se contra ele, para pedir-lhe que, das alturas de sua eternidade e bem-aventurança, preste contas aos homens da dor e da morte que os afligem. Se a irracionalidade de um deus sofredor justificou por antecipação toda a dor humana, isso aconteceu apenas durante as horas da agonia do Cristo, o momento em que o cristianismo triunfou na sua derrota. Pode-se dizer que, diante da magnitude destes instantes, o triunfo histórico do cristianismo sedimentou o seu fracasso.  É como se o homem desvelasse para si o seu desespero somente após Deus ter-se-lhe revelado. Por isso diz Camus que o revoltado é antes um blasfemo do que um ateu.

Esse blasfemo de algum modo reconhece a criação, quando, no paroxismo da negação,  deseja destruí-la,  na sua totalidade e não apenas na sua dimensão humana. "Poderíamos, talvez, atacar o sol, privar dele o universo ou nos servirmos dele para atear fogo ao mundo, isso sim, seriam crimes..."[4]  O ilimitado que se abre ao homem que se quer Deus é o crime ilimitado. O homem não se contenta mais com os seus erros, ele quer o crime para que a maior negação seja idêntica à maior afirmação. Deve-se compreender nesta linha a relação entre o dandismo e o mal no pós-romantismo e principalmente em Baudelaire. É esta identidade entre afirmação e negação que nos leva a compreender o satanismo e as simetrias entre Deus e aquele que o contesta: as flores do mal respondem ao paraiso,  como se o poeta desejasse construir o seu jardim de delícias pelo avesso da obra de Deus. É preciso entender, e Camus insiste nesse ponto, que a geração de Baudelaire herdara dos românticos a idéia de que deve haver uma relação estreita entre a arte e a atitude moral, e é desta conjunção que nasce propriamente a singularidade do artista, que é criador no sentido artístico e também no sentido ético, ou seja, não apenas inventa mundos, mas se constitui eticamente perante os mundos que inventa e perante o mundo em que vive. Note-se que a noção de criação se amplia de acordo com a perspectiva niilista: a criação do "mal" é uma prerrogativa que faz do poeta alguém que pretende rivalizar com Deus. A própria noção baudelairiana de "paraisos artificiais" indica essa atitude. Essa rivalidade é a maneira de a criatura opor-se ao criador. A tradição sempre entendeu que, se as criaturas não são propriamente responsáveis pelo mal, este existe pelo menos contemporaneamente a elas. É a negatividade inerente ao criado que faz com que o mal exista enquanto figura dessa negatividade. De alguma maneira, o satanismo pós-romântico se sente inclinado a reivindicar para o homem  a posição de um deus do mal. Daí a idéia de aceitar e  levar ao limite este mal que já estaria entranhado na finitude da criatura, e assim opor esta espécie de poder negativo à infinita positividade de Deus. É uma maneira de afirmar a negatividade recusando a salvação: daí a figura do poeta "maldito".

Mas a recusa da salvação pode também assumir a forma da recusa do mal. Na interpretação de Camus, o drama profundo da personagem de Dostoiewski  consiste em que, para recusar o mal, precisa de certa maneira recusar Deus. "Se o mal é necessário à criação divina, então essa criação é inaceitável. Ivan não mais recorrerá a esse Deus misterioso, mas a um princípio mais elevado, que é a justiça. Ele inaugura a empreitada essencial da revolta, que é substituir o reino da graça pelo da justiça."[5]  O que significa julgar Deus, arguí-lo a partir de uma indignação que nasce de um  princípio de justiça desvinculado da divindade, e que me permite até julgar a divindade. Recusa do mal, obsessão de justiça: Deus e a verdade não podem depender do sofrimento e da morte dos inocentes; a verdade não pode ser paga com o mal; para Ivan Karamazov, esta é uma barganha iníqua, e se disso depende a salvação e a imortalidade, então ele as recusa. Note-se o escândalo lógico  opondo-se  ao escândalo ético, e a aceitabilidade humana posta lado a lado com a verdade transcendente. Mesmo se  for verdade que o Deus que existe é aquele que permite a dor, a morte e o sofrimento, esta verdade permanece sendo inaceitável. Do fundo de sua limitação, o homem clama por uma justiça mais alta do que a divina. E assim contesta a dor e a morte que provêm da sabedoria de Deus, simplesmente porque o senso humano de justiça não pode aceitar as condições terríveis que a fé impõe. Em Dostoiewski, as relações entre revolta e cristianismo se tornam nítidas:  ele não aceita a dependência cristã entre verdade e sofrimento. Mas isso não leva a criatura a se opor a Deus como um deus a outro deus. Em Dostoiewski a revolta atinge um nível mais profundo de radicalidade: realizá-la completamente equivale a destituir Deus. Esta é a consequência extrema da recusa da salvação, da postulação de uma justiça maior do que a divina. Mas como destituir Deus é também tornar o mundo incompreensível,  trata-se de uma libertação que se aproxima perigosamente do liberticídio. "Eu vivo a despeito da lógica", diz Ivan - e não pode deixar de extrair a consequência da destituição de Deus e da Razão: "tudo é permitido". A radicalidade desta constatação pode ser medida quando a comparamos com o que Camus entende por "revolta romântica", aquela que mantém a diferença entre o permitido e o proibido, e se permite o proibido. É neste sentido que o pós-romantismo vê na prática do mal a maneira de opor-se a Deus. Mas em Dostoiewski desaparece o sentido deste desafio, e emerge propriamente a perspectiva niilista. Se Deus não existe, nem mesmo o mal faz sentido, pois ele deixa de ser uma forma de a criatura opor-se ao criador. Não se trata de opor valor a valor, ou valor a anti-valor, decidindo-se pelo princípio do mal, o que supõe a aceitação prévia de um certo maniqueismo. Se Deus não existe, o bem não faz sentido - mas então o mal também deixa de fazer. Esta é a significação do "tudo é permitido": a nulidade do bem e do mal.

No entanto, o lugar de Deus não pode permanecer vazio - este vazio seria sempre a lembrança de Deus. É por esta razão que, tendo destituído Deus, o homem vem a ocupar o seu lugar.  É nesse momento que Ivan se vê na posição de realizar uma justiça maior do que a de Deus. Punir somente os culpados, livrar da dor e do sofrimento os inocentes. Mas será verdade que, da inaceitabilidade dos critérios divinos decorre imediatamente a veracidade dos critérios humanos? É este o problema vivido por Ivan quando tem que decidir acerca da morte do pai. Tal morte decorre "logicamente" da luta pela justiça, da indignação contra a injustiça. Ao protesto contra o sofrimento do inocente deve seguir-se a punição do culpado. Trata-se novamente de dizer não à injustiça e sim à justiça: questão de lógica. Mas, por isso mesmo, Ivan não conseguirá se decidir. Ele se indigna com a injustiça, mas não consegue ficar indiferente à morte do pai. E essa situação o leva à loucura, por não lograr compreender, dentro da sua própria lógica, que o triunfo da virtude justifica o crime,  ou que a preservação da vida justifique o assassinato. É diante da ação que Ivan hesita. Por isso ele é um revoltado metafísico, e mesmo quando pretende a justiça, a transformação do mundo, a revolução, continua sendo metafísico. "Qual é o extremo da revolta metafísica? A revolução metafísica. O senhor deste mundo, após ter sido contestado em sua legitimidade, deve ser derrubado. O homem deve ocupar o seu lugar. 'Como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem novo se tornar Deus'. Mas o que é ser Deus?"[6] Esta é a pergunta crucial, porque ela significa transpor do pensamento à ação aquilo que se constatou: se Deus não existe, tudo é permitido. Tudo é permitido ao homem que assumiu o lugar de Deus. Ele o fez para ser mais justo do que Deus. A questão é saber se ele pode, agindo, realizar essa pretensão. É a questão que está por trás da hesitação de Ivan quanto à morte do pai - além, provavelmente, do simbolismo que se pode encontrar na analogia entre a morte do pai  e a morte do Deus Pai - do Criador.  Pois a personagem dostoiewskiana se considera uma espécie de testemunha da insânia de Deus,  expressa na criação. Por isso é preciso ser radical. Não basta assinalar as imperfeições da criação - a urgência da reflexão não contempla a questão da ordem abstrata do cosmos - mas se trata de acusar Deus. O homem revoltado tem a ousadia desesperada desse confronto direto.

Para Camus, o niilismo que é dessa maneira anunciado em Dostoiewski é "metodicamente" tematizado por Nietzsche: negar Deus, negar a resposabilidade de Deus - e assim libertar o mundo de todas as crenças. "Em vez da dúvida metódica, ele praticou a negação metódica, a destruição aplicada de tudo aquilo que ainda esconde o niilismo de si próprio, dos ídolos que escamoteiam a morte de Deus."[7] O genealogista sabe que a moral é a substância do mundo dos homens; por isso é preciso demolir todos os valores que se constituiram a partir da irradiação semântica de Deus enquanto fundamento da ordem humana. Nietzsche não é tanto o autor da morte de Deus quanto aquele que explicita as consequências dessa morte. Por essa razão ele teria compreendido, melhor do que ninguém, a liberdade difícil que o homem reivindicara para si. Ao colocar-se acima da lei divina, impusera-se também a tarefa de encontrar em si mesmo uma nova lei - ou então mergulhar na demência. Nietzsche, para Camus, é um moralista. Desejaria que o homem criasse para si a grandeza que havia negado em Deus. Mas ao mesmo tempo duvidava de que o homem pudesse vir a empregar nessa criação a mesma força que empenhara na destruição. Por isso somente o super-homem teria essa capacidade de criar, de fazer nascer o valor para além de todos os valores.  Entretanto, esta capacidade sobre-humana implica também a dor sobre-humana - e o homem morrerá nesse ato extremo de se fazer nascer novamente, na tentativa de reordenar um mundo inaceitável e insustentável. A menos que se torne Deus. E, consentindo em ser o deus da terra, aceite o que ela tem de inevitável e de fatal. Antes de tudo, um deus cria, não julga. A transvaloração consiste então na criação de valores, não na efetuação de juízos. E a superação dos antigos valores se traduz na aceitação da terra, do existente, na denúncia do ascetismo dos além-mundos. Por isso o homem é um deus que diz sim à terra e à existência, e torna-se um deus porque pronuncia esse sim. E então surge a questão fundamental que Camus põe para o niilismo: quando à negação de Deus segue-se a substituição dele pelo próprio homem, podemos falar em realização do niilismo, ou devemos talvez pensar que essa autodivinização representa antes a projeção de um irrecusável desejo de afirmação, que finalmente triunfaria sobre a negação originária contida no niilismo?  Camus cita uma frase significativa de Nietzsche: "Se existe um Deus, como suportar o fato de não sê-lo?"[8] O homem vai então fazer-se criador, e a recusa de Deus e do mundo engendrará esse homem-deus que é o artista. Ele recusará as normas, as regras e os valores; seu olhar crítico atravessará todas as camadas de sentido, decifrando nelas a astúcia do filisteu; abalará os alicerces morais desse velho mundo em que o homem se sentia em casa. Mas não se resigna a permanecer em confronto com o absurdo; tentará superá-lo, com a força criadora que crê poder retirar da própria solidão resultante de suas recusas. O homem se impõe a tarefa que corresponde à sua autodivinização: vai reconstruir o mundo, transcendendo todos os valores, fazendo-se herdeiro da inocência heracliteana, aceitando o jogo da contingência e do acaso como se fora a própria necessidade - mas uma necessidade que torna o mundo menos "sério e doente".  Para Camus, Nietzsche é mais um exemplo, talvez um caso privilegiado, dentre aqueles que constataram o absurdo e em seguida tentaram superá-lo. O sentido nietzscheano de criação está vinculado a essa tentativa, que derivaria de uma certa  ressignificação metafísica do artista.  É como se Camus entendesse que, no artista, a vontade de poder está canalizada para a criação e, por isso, numa espécie de subversão desesperada do platonismo, desejará que a aparência, o parecer inscrito na criação humana, venha a colocar-se no lugar do mundo negado.

É esta a razão pela qual, na sequência da apreciação do niilismo nietzscheano,  Camus se ocupa, no Homem Revoltado, da  "Poesia Revoltada", última manifestação da revolta metafísica. Lautréamont e Rimbaud teriam pretendido encontrar, naquilo que a poesia  teria de mais dilacerante,  "a verdadeira vida". "(...) é possível dizer, sobre esses poetas que investem contra os céus que, ao desejarem tudo demolir, afirmaram ao mesmo tempo sua nostalgia desesperada de uma ordem. Por uma contradição última, eles quiseram extrair razão da desrazão e fazer do irracional um método."[9]  A dimensão metafísica da revolta poética, e sua relação com o niilismo contemporâneo, fica expressa quando o poeta considera a sua revolta ao mesmo tempo legítima e impotente. É legítimo e verdadeiro clamar contra a injustiça; mas esse clamor é o canto do poeta, impotente para restabelecer a justiça. Por isso a poesia vai cultivar a coerência desesperada de renunciar a si mesma, como em Rimbaud, já que a palavra poética é ao mesmo tempo verdadeira e impotente. É essa impotência que faz também com que Lautréamont, para defender o homem da tirania de Deus, tenha de atacá-lo como criação divina. "Apresento-me para defender o homem": assim o poeta anuncia a sua missão. "Mostre-me um homem que seja bom": assim o poeta anuncia a impossibilidade de sua missão.[10] Como se o poeta amasse o homem enquanto homem e o odiasse como criatura de Deus. Compreende-se então que, nesses poetas, à revolta nascida da lucidez agregue-se um elemento de furor, que faz com que a nostalgia da ordem se traduza numa paixão desordenada que pode dirigir-se para a destruição. E isso porque a impotência da revolta poética a faz voltar-se contra o próprio poeta e contra todos os homens, nos quais está expressa a perversão da criação. E assim a culpa generalizada retira da poesia qualquer pretensão de construir entre os seres humanos algo como uma solidariedade na adversidade. Por isso diz Camus que esses poetas não são "filhos legítimos" da revolta, embora seja a revolta que nos faz compreender a contradição que tiveram de sofrer.  Talvez nada ilustre melhor essa contradição do que a simultaneidade da Iluminação e do Inferno em Rimbaud.  Para Camus, não se deve procurar explicar a passagem entre Illuminations e  Une Saison en enfer. Os dois livros nasceram da mesma contradição e não existiriam de outro modo. É no cruzamento das duas obras e das duas atitudes poéticas que poderemos encontrar a linguagem "estranhamente justa" em que Rimbaud exprime a revolta. É a manifestação daquela "contradição última" que caracteriza a expressão da revolta poética do final do século XIX. O que Camus assinala em Rimbaud é que ele, não tendo prosseguido na contradição, não teria tampouco vivido a revolta poética que tão prematuramente expressara. O silêncio de Rimbaud deveria assim ser entendido como uma renúncia à contradição e uma renúncia à revolta. Pois "o canto duplo e alternado", "essa contradição, que o matava, era o seu verdadeiro gênio."[11] Foi a maneira como ele viveu poeticamente o conflito interno que caracteriza a revolta, a luta entre a vontade de ser e o desejo de aniquilação. Camus encontrará no surrealismo algo próximo a uma compreensão da vivência dessa contradição: "É a busca do cume-abismo, familiar aos místicos." A referência à mística nesse passo precisaria ser explorada; vamos por enquanto entendê-la apenas por um de seus aspectos: a exigência de reunir elementos inconciliáveis. No contexto da interpretação que faz Camus da revolta poética, a obrigação moral de viver e compreender a experiência humana como a exigência impossível de reconciliação entre o racional e o irracional, entre a grandeza e a derrota. 


[1] CAMUS, A.   O Homem Revoltado, pg. 39.
[3]CAMUS, A. O Homem Revoltado, pg. 45.
[5]CAMUS, A.  O Homem Revoltado, pg. 75.
[7]CAMUS, A. O Homem Revoltado, pg. 87.
[9]CAMUS, A. O Homem Revoltado, pg. 103.
[11]CAMUS, A. O Homem Revoltado, pg. 112

Autor:  Franklin Leopoldo e Silva