Nas apreciações críticas, fortemente negativas, que Jeanson e Sartre fazem do livro de Camus, sobressai uma questão que, embora não esteja formulada com a mesma clareza nos dois autores, pode no entanto ser considerada comum a ambos. De onde fala Camus? A partir de que lugar se constitui esse discurso que considera o mundo e a condição humana absurdos, e a história uma agitação inútil? Por que e até que ponto ele pode falar da impossibilidade de sentido para a vida de cada pessoa e para a vida em geral? Para Jeanson, essa posição se constitui fora do contexto concreto da vida humana e é a partir desta situação, por assim dizer, abstrata, que Camus descreverá a oposição chocante entre o "espírito mediterrâneo" fiel à "constância solar", à "pura luz do meio-dia", e o mundo real com as "contradições e os sofrimentos humanos". Esta oposição, ele a representa ao mesmo tempo como a submissão de uma humanidade condenada, destituída de seu direito, a uma "Anti-razão", do que resultaria o Mal nas suas várias formas, oprimindo o ser humano e fazendo-o sofrer uma pena injusta. A reação mais autêntica a esta espécie de injustiça metafísica seria o enfrentamento do mundo absurdo numa atitude de rebelião também absurda, de alguma maneira ilustrada em A Peste, no médico que, de antemão vencido pelas forças do Mal, luta para arrancar à morte o maior número possível de vidas.
Jeanson notará, na passagem do Mito de Sísifo ao Homem Revoltado o reconhecimento, por parte do indivíduo, de que não está só nessa condição de estranho no mundo absurdo, mas que compartilha esse destino com os demais. O escravo que se rebela encontra em si a condição humana como um valor. Esta afirmação do valor do homem e da vida faz com que o absurdo não conduza ao suicídio mas sim à revolta. Já que tanto o viver quanto o morrer são causa de sofrimento, é a própria condição humana, e toda a criação que se encontram postos em questão. Esta seria a dimensão da revolta metafísica, em que primeiramente o homem conquista o seu próprio ser trágico para afirmá-lo frente a Deus; mas logo este enfrentamento se prolonga em expulsão da transcendência e em implantação do império dos homens. A revolta perde a memória das suas origens e se transforma em revolta histórica ou revolução: o assassinato multiplicado para a afirmação de liberdade, guiada pela razão. Da revolução francesa à revolução russa, Camus elabora então uma trajetória que, segundo Jeanson, estaria submetida a três princípios: "1. a 'rebelião histórica' somente se manteve até aqui sob a forma de revolução; 2. Uma revolução é uma rebelião pervertida; 3. Toda revolução acaba por renegar o movimento inicial de rebelião em proveito de uma pretensão totalitária."[1]
Esta estratégia de abordagem das revoluções deverá ser de ordem metafísica: o encontro do fio condutor "lógico" que permitirá entender a reiteração de algo que se poderia denominar as constantes metafísicas das revoluções. Jeanson acredita poder traduzir o propósito de Camus alegando que este deixara de lado, na sua análise, as causas "vulgares" de ordem histórica e econômica. Não se trataria, para Jeanson, de um critério apenas metodológico, mas do abandono das causas históricas e econômicas. O resultado dessa opção teria sido a redução do conceito de "revolução" ao conceito de "divinização do homem". O que Jeanson deseja marcar na sua crítica é que a análise da revolução pelo prisma metafísico implica numa decidida posição anti-histórica e não apenas anti-historicista, como se Camus entendesse que a verdadeira compreensão da índole das revoluções só fosse possível por via de um resoluto abandono de qualquer perspectiva histórica, aí incluída a consideração das condições sócio-econômicas no estudo da gênese e processo dos movimentos revolucionários. Camus se referiria à história apenas para mostrar, quase metaforicamente, a continuidade de uma incansável reiteração dessa pretensão humana de divinização. Como se a experiência histórica fosse algo diretamente derivado de um "diálogo de idéias: de um lado o protesto metafísico contra o sofrimento e a morte; de outro, a tentação, igualmente metafísica, de amplo poder."[2] Ignorar totalmente a infraestrutura: seria este o princípio que governaria a análise de Camus, e que lhe teria possibilitado extrair todas as consequências.
Tanto a referência ao "transcendentalismo" de A Peste quanto à atitude anti-histórica de Camus merecerão, da parte deste, ampla refutação. O narrador de A Peste não é um observador neutro colocado na posição de Argus e que desenvolveria uma crônica impessoal; é o médico, protagonista diretamente envolvido, até demasiadamente envolvido nos acontecimentos, e a narração em terceira pessoa significa o esforço desesperado para conferir objetividade a algo que na verdade é uma confissão de revolta e de fracasso. Quanto à atitude anti-histórica, seria apenas uma separação metodológica de interesses. O estudo das bases sociais, históricas e econômicas das revoluções, de que há numerosos exemplos, não interessaria a Camus, que pretenderia destacar, nas revoluções históricas, a presença das constantes metafísicas que devem ser remetidas à noção de revolta. Não se trataria, portanto, de desprezar ou de ignorar as causas históricas; tratar-se-ia de uma opção metodológica por não considerá-las, em proveito de uma análise que se detenha em elementos até então pouco notados, mas que o autor considera de extraordinária importância. O que Camus vai procurar detectar na atitude de Jeanson é um dogmatismo que o faz tomar por mera retórica a declaração explícita da intenção metodológica, certamente porque não pode aceitar a possibilidade de uma compreensão do evento revolucionário fora da análise material da sua causalidade histórica. Adiante se verá que, para Camus, essa posição de Jeanson não se vincula somente à defesa de idéias mas teria o propósito de desqualificar eticamente a posição contrária, definindo-a não apenas como teoricamente equivocada mas também como servindo objetivamente os interesses do status quo.
Como Jeanson interpreta aquilo que seria, para Camus, a causa da "perversão revolucionária"? O crítico denuncia, em Camus, a ligação lógica, a seu ver indevidamente estabelecida, entre os resultados da revolução russa, consubstanciados unicamente no terror, e a filosofia de Marx. Mais uma vez Camus estaria deixando de lado a causalidade histórica, isto é, as circunstâncias concretas de um movimento revolucionário, lugar em que se deveria buscar as razões de seus possíveis desvios. Mas como Camus trabalha com a necessidade metafísica, a relação que ele estabelece entre Marx e o terror estalinista é doutrinal: de nenhuma maneira as premissas teriam permitido que se chegasse a outra consequência. Só que, no entender de Jeanson, isto não estaria demonstrado no livro e, para acobertar a inexistência ou a impossibilidade dessa demonstração, Camus se vale de um estratagema: começa por examinar a teoria de Marx e, a partir de um certo momento, opera uma inversão e passa a interpretar a teoria a partir dos fatos, para encontrar então na teoria os princípios que teriam dado origem a tais resultados. Esta passagem direta de Marx ao estalinismo elide o que para Jeanson deveria ser o essencial da análise: "as circunstâncias em que surge [o movimento revolucionário], sua marcha efetiva e os comportamentos humanos que o constituem."[3] Ora, para nivelar dessa forma o trabalho das ideologias, fazendo com que todas estejam basicamente a serviço de uma mesma pretensão metafísica, Camus tem que encontrar, antes de Marx, um pensamento que tenha tratado a história na dimensão de um absoluto. Ele o encontra em Hegel, mais precisamente no procedimento de expulsão da transcendência e na idéia da história como lógica imanente ao devir. Deve-se notar que Jeanson confere igual importância aos dois procedimentos hegelianos analisados por Camus: a expulsão da transcendência e a introdução da razão abstrata na história. Desta forma ele tende a interpretar que a "culpa de Hegel", tal como a entende Camus, teria sido a de expulsar a transcendência e destruir os valores formais da moralidade, o que resultou na transformação da história em campo no qual que se desenvolverá o processo de divinização do homem, o seu trajeto rumo à coincidência com Deus. Ora, sendo este o momento designado como a culminação necessária do processo histórico, a ação histórica também necessariamente o visará e estará sempre comprometida com esta pretensão desmedida. Seria esta a raiz da necessidade lógica que faz com que toda revolução se transforme numa decisão racional acerca da divindade do homem. E isto ocorre porque os valores transcendentes teriam sido substituídos pela racionalidade imanente.
Sendo o advento do "reino da história" o passo decisivo na direção do niilismo e "da identificação do homem com a sua própria história", tendo isso ocorrido precisamente no século XIX, época em que a burguesia serviu-se do formalismo dos valores para consolidar a dominação de classe, somos levados a admitir que a época do niilismo coincide com a época da injustiça mais contundente. Jeanson julgará possível tirar desta conjunção de fatores a seguinte conclusão: se sabemos ao mesmo tempo que existe a injustiça e que o protesto revoltado contra ela é ineficaz (e que a eficácia leva ao terror), a única sabedoria possível é cruzar os braços e conformar-se com o status quo. A abordagem que Camus faz da revolta histórica nega a história como possibilidade autêntica de realização humana. A passagem de Camus pela história teria sido um desvio com o único objetivo "acabar com a história". "Frente às praias africanas, a história propriamente dita se confunde com a 'história do orgulho europeu', que não é mais do que um interminável delírio noturno. Já sabia Sísifo que não se deve cair na armadilha da ação: há que agir, certamente, mas simplesmente por agir, e sem esperar daí nenhum resultado, sem alimentar a ilusão de dar um sentido àquilo que não pode tê-lo."[4] A ação histórica que se quer eficaz gera o mal histórico, expressão do Mal Absoluto. A acumulação do mal histórico deriva do desejo de fugir ao Mal Absoluto.
Assim, sendo a revolta, na autenticidade em que a entende Camus, uma verdadeira recusa da história, a conclusão final é que Camus, recolhendo-se a esta revolta, estaria procurando para si uma evasão e um "refúgio onde se pudesse entregar às delícias rebeldes de uma existência sem história."[5] Mas, quase que antecipando a resposta de Camus, Jeanson não pode ignorar os textos em que Camus reconhece a história e nela a inserção do homem. Mas, completa Jeanson, sendo a história uma "variedade do absurdo" o homem se colocará frente a ela como o artista frente à realidade: não pode escapar dela, mas pode recusá-la. Ou seja, Camus ilustra a figura hegeliana da Bela Alma, aquela que faz da angústia e da nostalgia uma forma de gozo. Não deixa de ser uma forma de estar na história. E, portanto, se Camus acusa o marxista revolucionário de ser um prisioneiro da história, ele também o é, só que de outra maneira. Apenas, a sua forma de estar na história é a recusa da ação histórica, a negação de toda conduta, atitude que para Jeanson é insustentável. Pode existir uma rebeldia que descanse em si? Na verdade Jeanson quer tirar daí uma conclusão no mínimo embaraçosa para Camus: a rebeldia deste não descansa em si; ele efetivamente se rebela contra a história e contra a revolução, o que significa estar objetivamente a favor "deste outro frenesi" que é o capitalismo. O diagnóstico beira a acusação. Jeanson quer dizer que, se Camus vê na revolução enquanto tentativa de remediar a injustiça histórica uma paisagem de terror, um panorama igual ou pior já existe para aqueles que sofrem o horror presente do capitalismo.
A idéia de que estamos todos na história, e que recusar esta condição é optar pelo idealismo em teoria e pelo absenteismo na prática é aprofundada na crítica de Sartre. Interessante notar que Sartre se propõe a examinar unicamente a carta que Camus enviou a Temps Modernes como resposta à crítica de Jeanson, e ele se mantém efetivamente fiel a este propósito, sobretudo na primeira parte do texto. Ainda assim parece tocar nos pontos-chave de maneira mais pertinente e mais profunda do que Jeanson. A sua primeira indagação é contundente e radical: será que, na passagem do Mito de Sísifo ao Homem Revoltado a própria revolta não foi perdida? Aquele movimento de ebulição, a ansiedade diante da incerteza e do absurdo, a busca permanente, embora desiludida: este processo tão característico de Mersault, de Sísifo, não terá sido reprimido por uma "ditadura violenta e cerimoniosa, que se apóia numa burocracia abstrata e que pretende fazer reinar a lei moral"?[6] Ou seja, o Camus de "O Homem Revoltado" parece já não ter muito a ver com a instabilidade subjetiva do Estrangeiro, feita de indiferença e de amor, ou com a mescla trágica de aceitação da morte e da alegria de viver que transparecia em Sísifo. Camus tornou-se a encarnação da lei moral e por isso já não necessita tanto se defender de Jeanson quanto apontar, no seu texto, as incongruências que caracterizam a má-fé, em prol da salvaguarda de "nossas razões de viver", que Sartre interpreta como sendo as razões de toda a humanidade.
É dessa maneira que Sartre retoma aquela que para ele, tanto quanto para Jeanson, é a questão de fundo: de onde fala Camus e como se constitui o direito inerente à sua fala. "Você é mandatário. Você fala, segundo diz, 'em nome dessa miséria que suscita em seu favor milhares de advogados e nunca um só irmão'. (...) Permita que desconfie desse fraternalismo. E a miséria não o encarregou de nenhuma tarefa."[7] Assim como Camus assinala aos outros - aos defensores da revolução - o lugar de advogados e não de irmãos dos oprimidos, assim também Sartre recusa a Camus aquilo que ele presume ser a posição reivindicada por ele, um fraterno emissário dos oprimidos, e não só deles, como também dos resistentes. Mas, como "todos somos burgueses" ninguém tem mandato; cada um fala por si, contra ou a favor dos oprimidos, dos perseguidos e dos injustiçados. Para Sartre, Camus teria pretendido construir para si uma posição de único defensor da justiça, já que aqueles que a defendem em nome da revolução na verdade a traem. Camus teria julgado possível colocar-se entre os injustiçados, talvez à frente deles, protegendo-os das armadilhas da história, mas a legião dos oprimidos não lhe delegou este posto. E portanto, quando fala desta posição, que teria assumido arbitrariamente, exerce violência, a "violência virtuosa" própria da indignação moralista, o que aparece para Sartre como uma espécie de tática forense. Mas significa também alardear uma superioridade moral que chega ao extremo da anulação do outro como interlocutor, até mesmo como ser humano. Por isso Camus não contradiz Jeanson, ele o julga, impingindo-lhe toda espécie de táticas indecorosas e contrárias à honestidade intelectual. Como se não bastasse, o "método" utilizado esconderia um propósito ainda mais imoral: escamotear o verdadeiro problema, o terror estalinista, frente ao qual Jeanson não desejaria se manifestar, porque teria de tomar uma posição, ou contrária ou a de cúmplice. Esta maneira de apropriar-se da posição do outro, nota Sartre, é absolutista, é própria de quem fala a partir de verdades intangíveis. Dirá mais adiante que Camus chega a confundir a sua posição com a da própria Verdade, uma nítida contradição para quem se diz num mundo abandonado pela transcendência e pela racionalidade.
Camus teria invertido a situação. A propósito de responder a uma resenha desfavorável, o que em princípio é direito de qualquer autor, transforma a resposta numa espécie de inquérito que termina por incriminar o resenhista, atribuindo-lhe propósitos intelectualmente desonestos, do ponto de vista do método utilizado, e tergiversações indignas para ocultar o problema que realmente deveria ser discutido, chegando a afirmar que "nenhum crítico do meu livro poderia por de lado o fato" de existirem na URSS campos de prisioneiros submetidos a trabalhos forçados. Ou seja, Camus ameaça com a lei moral. Para Sartre parece estranho que o autor pretenda dizer ao crítico como este deveria tratar o livro que examina. Mas este não é o maior problema. A imposição moral de Camus traz como implícito que Jeanson e/ou Sartre (pois Camus se dirige de fato aos dois, ao provocar no seu próprio texto uma indistinção deliberada) fingem ignorar a existência dos campos de prisioneiros. Sartre se refere então aos textos de Temps Modernes nos quais a questão havia sido tratada, mesmo antes da denúncia que abalou a Europa. Ora, tais campos são objeto de indignação geral, e Sartre compartilha deste sentimento. Mas há outro fato que deveria ser considerado igualmente inadmissível. "Sim, Camus, como você eu acho esses campos inadmissíveis: mas igualmente inadmissível o uso que a "imprensa dita burguesa" faz diariamente deles. Eu não digo: o malgaxe antes do turcomano; digo sim, que não devemos utilizar os sofrimentos inflingidos ao turcomano para justificar os que nós inflingimos ao malgaxe."[8] Sartre tenta mostrar os riscos da aplicação formalista e unilateral da lei moral num mundo convulsionado. Eis o drama: é lícito expressar a indignação contra o tratamento desumano que o regime estalinista inflige aos povos submetidos. No entanto, o anticomunismo utiliza esta indignação para escamotear o mesmo tratamento que os países colonizadores impõem aos povos colonizados, como faz a França em relação ao norte-africano. Como os que denunciam a opressão do colonialismo são em geral os comunistas, o burguês reacionário crê invalidar este protesto com a simples menção dos campos soviéticos. Isto significa - e este é para Sartre o verdadeiro problema, que escapa a Camus - que a direita colonialista não se sente propriamente indignada com a descoberta do grau a que pôde chegar a repressão estalinista; ela se sente, antes, feliz e aliviada: eis que se encontrou um anteparo eficiente para as denúncias da violência colonialista e imperialista. Aquele que quer protestar, que proteste primeiro contra a opressão comunista - que se vire contra o comunismo. Caso contrário, a sua denúncia da violência capitalista estará associada à sua cumplicidade com a violência estalinista. Trata-se de uma chantagem para obrigar o outro não a denunciar, mas sim a calar. Certamente Sartre não pretende que Camus esteja alinhado entre os chantagistas: a sua integridade moral não o permitiria. Mas talvez aquilo que a sua integridade moral descarta como indigno, o seu integrismo moral poderia involuntariamente apoiar. E este integrismo se expressa na violência moral e no imperativo formal, segundo os quais o crítico do seu livro estaria obrigado a abordar o problema dos campos de concentração soviéticos. O que Sartre deseja aclarar para Camus é o teor abstrato do moralismo, que perde o foco ao generalizar-se como atitude e se condena a ignorar todas as diferenças e todas as nuances. Ora, os senhores e os escravos são concretos, as situações de opressão são concretas. Isso nos obriga a considerá-las na particularidade e não a escolher quais senhores ou quais escravos defender. Por exemplo, a situação particular da rebelião na Indochina: os vietnamitas são colonos lutando pela liberdade; ao mesmo tempo são comunistas, isto é, tiranos, ao menos em potencial. Seriam escravos e tiranos ao mesmo tempo? Seriam escravos indefensáveis? O invasor europeu (o senhor) estaria nesse caso justificado?
Não se pode defender a liberdade a partir da indiferença às liberdades, porque a liberdade só existe em situação. Se há opressão, é porque o homem tornou-se objeto para o homem. O que há de geral nisso é que o homem, sendo livre, pode tornar-se no entanto objeto para outro homem. Paradoxo, sem dúvida, mas intrínseco à condição histórica. A natureza não oprime, porque a natureza não pode fazer de nenhum homem, objeto; só um homem pode fazer de outro um objeto. No pensamento de Sartre esta luta das liberdades representa o conflito entre as consciências, cada uma desejando objetivar a outra. Portanto, se perguntarmos se a liberdade deve ter um limite, ou seja, se perguntarmos até que ponto cada um tem o direito de exercer a sua liberdade, a resposta jamais será encontrada na natureza, mesmo qualificada de humana. É no outro homem que um homem se depara com os limites da sua liberdade. Isso configura as situações concretas em que os sujeitos, isto é, as liberdades, interagem.
Estas elucidações de ordem teórica, que se referem à concepção sartriana da liberdade, são feitas para repor a questão que, segundo Sartre, teria sido imprecisamente formulada por Camus, quando identificou a liberdade existencialista à "liberdade sem freios". Como conciliar uma tal liberdade com a necessidade histórica? Camus não apenas vê aí uma tarefa impossível, como uma espécie de deterioração ética do próprio conceito de liberdade. Pois, sem conciliar os opostos, o existencialismo proporá ao homem essa liberdade completa para logo depois entrgá-lo ao mais rígido determinismo[9]. O que equivale, nas duras palavras de Camus, a "dedicar-se a fabricar escravos". Sartre procura mostrar que sua filosofia não promete o paraiso, a liberdade total. Pelo contrário, por mais paradoxal que possa parecer, a vivência da liberdade numa situação histórica de opressão se define como "liberdade submetida". Daí decorre que: "A nossa liberdade, hoje, reduz-se à livre escolha de lutar para nos tornarmos livres. E o aspecto paradoxal desta fórmula exprime apenas o paradoxo da nossa condição histórica."[10] Não se trata de escolher se vamos ou não nos tornar prisioneiros. Todos somos prisioneiros. Trata-se de nos unirmos para "quebrar as grades". Movimento que pode degenerar em tirania, certamente. Que fazer? Condenar de antemão toda tentativa? Retirar-se em exílio, para o deserto, que não pode ser senão algum canto da cela em que estamos aprisionados? Ou participar da luta dos homens, para merecer o direito de interferir nela, de modo a que o anseio de liberdade não se transforme em nova opressão, no curso de sua realização. Aceitar os homens, os seus combates, aceitar a história: "aceitar muitas coisas se queremos modificar algumas".
Não foi, segundo Sartre, a opção de Camus. Ter-se-ia retirado, contrariado, das lutas humanas, por tê-las reduzido a um combate entre duas infâmias, e teria construído para si a posição do juiz. Mas como se pode ser juiz de uma luta para a qual se deu as costas? Sem querer ver, sem querer participar, condenou os contendores, a disputa, o mundo em que ela se dá, todo o universo. Encontrou uma culpa descomunal, um enorme e formidável culpado, e tranquilizou a consciência. Mas pode uma consciência permanecer tranquila se para isso tem que reiteradamente condenar, e condenar tudo?
No entender de Sartre, o que Camus não compreendeu foi o significado e a consequência da sentença de Pascal: estamos embarcados. Não nos compete escolher se nos comprometemos ou não; qualquer escolha seria um compromisso, e somente podemos escolher que compromisso assumir. Na carta enviada a Temps Modernes, Camus se insurgira contra a ironia de Jeanson, que via na atitude de Camus o projeto de alguém que prepara para si um retiro, no qual gozará o repouso de uma rebeldia que repousa em si, alheia à agitação histórica. Mas este Camus, que recusa partilhar os fins humanos, mantém-se ainda totalmente fiel a si próprio? Aquela chocante obsessão de honestidade que afastava Mersaut do cotidiano dos outros homens, e pela qual estes o condenaram à morte, é, no limite, exigência de viver na contradição, não de afastar-se dela. A felicidade não havia sido antes definida como um estranho acordo, que se expressa na dupla consciência do homem, entre o "seu desejo de permanência e o seu destino de morte"? "A felicidade não era bem um estado nem era bem um ato, era essa tensão entre as forças da morte e as forças da vida, entre a aceitação e a recusa, pela qual o homem define o presente - isto é, ao mesmo tempo o instante e o eterno - e se torna ele próprio."[11] É em em meio a essa tensão que o homem exige um sentido, para si e para o mundo, mas a ausência de Deus, "o silêncio eterno da divindade", torna o mundo indiferente e o homem estrangeiro. É a partir dessa constatação que, segundo Sartre, a relação com esse Deus mudo e constantemente ausente da história deve ser construída fora da história: a pergunta que o homem dirige à transcendência perdida, e que nunca será respondida, institui uma relação ela mesma transcendente. Uma tal concepção da condição humana só pode ser hostil à história e, segundo Sartre, isso constitui uma vertente do pensamento filosófico, na qual se insere Camus. Ela pretende a felicidade sombria e austera da tensão moral, em que todos os homens se reencontram. Mas os homens não se reencontram, e a tensão moral é, para a maioria deles, um divertimento de privilegiados. A solidariedade diante da adversidade deveria unir todos os homens, e proorcionar a cada um a sua salvação. Mas como, numa sociedade dividida, esta solidariedade não existe, a salvação de alguns é motivo do ódio de muitos. O mundo conflituado, socialmente conflituado, faz com que os homens se definam pelo ódio. A dignidade do oprimido passa pelo ódio que ele pode ter dos seus opressores; a solidariedade de classe passa pelo ódio dos inimigos comuns. E este Camus, que quer desesperadamente recusar o ódio, que recusou-se mesmo a odiar os alemães, este Camus nutre um ódio profundo por Deus, que se pode notar nos seus livros. E este ódio se reflete na relação com a história, porque esse Deus recusou-se a conferir-lhe um sentido. Por isso Camus acusou os alemães de o terem forçado a entrar na história. E depois disso jurou nunca mais participar dela. Mas os homens não decidem se entram ou não na história; já estão nela desde sempre. E portanto tudo o que Camus pode conseguir não é liberar-nos da história, é desencorajar-nos de agir nela, de escolher, numa sociedade irremediavelmente em guerra consigo mesma, de que lado haveremos de ficar.
[2] JEANSON, F. Albert Camus o el Alma Rebelde, pg. 16.
[3] JEANSON, F. Albert Camus o El Alma Rebelde, pg. 18.
[4] JEANSON, F. Alber Camus o El Alma Rebelde, pg. 23.
[5] JEANSON, F. Albert Camus o El Alma Rebelde, pg. 25.
[6] SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, IN: "Polemica Sartre-Camus, El Escarabajo de Oro, Buenos Aires, pg. 55-56. Trad. portuguesa Situações IV, Publicações Europa-América, Lisboa, 1972, pg. 81.
[7]SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, pg. 56-57. Tradu. port. pg. 82-83.
[8]SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, pg. 65. Trad. port. pg. 92.
[9]CAMUS, A. Carta a J.P. Sartre, edição citada, pg. 51.
[10]SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, pg. 69. Trad. port. pg. 96.
[11]SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, pg. 70. Trad. port. pg. 98.
Autor: Franklin Leopoldo e Silva