Crítica de Sartre a Camus

Quando faz notar a Camus que sua atitude significa a recusa de compartilhar os fins humanos, colocando-se nessa posição em falso de quem se acredita fora da história, Sartre procura ressituar uma questão fundamental: "A história tem um sentido?,  pergunta você, tem um fim? Para mim, é a pergunta que não tem sentido: porque a história, fora do homem que a faz, não é mais do que um conceito abstrato e imóvel, do qual não se pode dizer que tenha um fim ou que não o tenha. E o problema não está em conhecer o seu fim, mas em dar-lhe um."[1] Trata-se novamente da posição que Camus estaria tentando construir para si, e que o colocaria fora da situação dos sujeitos históricos por via do questionamento do sentido e da finalidade, que é ao mesmo tempo uma recusa da história. Pouco antes, Sartre já havia dito que Camus se acredita na posição de quem pode exigir "garantias formais" para entrar na história. Esta o teria surpreendido em 1939, e a necesssidade de responder à onda de violência nazista teria postergado o problema, que Sartre acredita claramente formulado, no entanto, em  Cartas a um Amigo Alemão. Para evitar o que consideraria como armadilhas da história, Camus se vale de um estratagema idealista: pretende decifrar o sentido e a finalidade da história para só então decidir-se pela ação histórica, afim de não ser arrebatado pelo absurdo em que o mundo histórico pode se transformar. É a exigência de uma garantia a priori, como se as ações históricas manifestassem conteúdos susceptíveis de serem enquadrados em formas previamente delimitadas e estabelecidas. Camus se comporta como alguém que pede à história que lhe forneça, antecipadamente ao seu próprio curso, demonstrações de sua consistência. Para Sartre, é evidente que isso nunca ocorrerá, e a razão desta impossibilidade está na própria concepção de história.

A história, antes de ser um sistema de fatos, é uma pluralidade de atos, e nem mesmo podemos saber a priori se tais atos são articulados entre si. E isso pela simples razão de que os fatos são engendrados pelos atos: é isto que Sartre quer fazer ver a Camus quando diz que "fora do homem que a faz [ a história] não é mais do que um conceito abstrato e imóvel". A história não pode apresentar antecipadamente um sentido porque ela só existe na decorrência das ações humanas que a vão construindo. Essa dinâmica é que diferencia a história, como conjunto de atos reais que produzem realidades, de um sistema conceitual formado por uma sequência de referências formais ou abstratas. Assim, podemos refletir sobre o conceito de história, isto é, podemos discutir como abordar os fatos de modo a restituir, no plano do conhecimento, o movimento dos atos que os constituíram. Ou podemos, inversamente, contentarmo-nos com um conjunto de fatos articulados mecanicamente, por ex. Essa discussão versa muito mais sobre o conhecimento histórico do que sobre a própria história enquanto sucessão de realidades. Poderíamos até, no plano do conhecimento, discutir se seria mais pertinente considerar a história como sucessão linear ou como movimento dialético: como determinação  mecânica de efeitos pelas causas ou como produção de realidade pela superação sucessiva de contradições. Enquanto nos mantivermos numa discussão prévia, acerca de possibilidades mais ou menos adequadas, estaremos na posição do nadador que observa, o mais detidamente possível, as condições da piscina antes de se lançar dentro dela, procurando assim antecipar o quanto puder a situação que terá de enfrentar realmente. Ora - se for lícito apelar para uma linguagem bergsoniana - a imobilidade nunca revelará a mobilidade, por mais cuidado que tenhamos em examinar esta do ponto de vista daquela, simplesmente porque uma coisa só nos pode dar idéia de seu oposto lógica e conceitualmente, nunca por via de uma experiência. A experiência histórica é irredutível à sua antecipação formal.

No limite, a exigência de uma exibição prévia de sentido e finalidade é o correlato de uma atitude  não apenas negativa,  mas negadora da história. Como a história é um processo real, pedir que nos seja fornecido o sentido deste processo antes que ele se realize equivale a destitui-lo de seu próprio ser e reduzí-lo a uma abstração. Camus o faz, certamente, para preservar o homem, mas para Sartre não é possível preservar o homem da história a não ser preservando-o de si mesmo. A história em si mesma não tem sentido nem finalidade: os indivíduos e os grupos é que perseguem seus fins, o que significa propriamente "fazer história". Por isso insinua Sartre que o verdadeiro absurdo é pensar a história desvinculada dos homens. Ora, se para existir história é preciso que os homens a façam, segue-se que qualquer sentido que a história possa vir a ter lhe terá sido dado pelos homens e por via de suas ações. E só pode ser o sentido que emana das expectativas, dos projetos e das esperanças de homens em situação.

O que significa estarem sempre os homens em situação? Primeiramente, que eles estão sempre num contexto de circunstâncias diversas: situados. Por aí já se vê que a historicidade se explicita na diversidade das situações históricas efetivamente vividas. Em segundo lugar, os homens estão sempre diante de um projeto, no qual a consciência se projeta na expectativa de realização. Cada homem é aquilo que ele se torna. O desejo de ser, que é uma espécie de paixão metafísica, se explicita sempre num projeto que tem a ver com uma dada situação em que cada um se encontra e com aquilo que cada um quer construir para si, no interior de uma história que é o contexto que se abre às possibilidades humanas. Disso se pode depreender que o sentido que os homens atribuem aos seus projetos é também o sentido que eles atribuem à história. Não se trataria nunca, portanto, de um sentido dado. Poder-se-ia também dizer que o único sentido que subjaz a todos os projetos humanos é precisamente este que está entranhado na relação entre a consciência e o seu projeto. Mas o homem é este projeto, na medida em que nele nada é inerte e sedimentado, como nos seres naturais. É por iso que se deve dizer que o sentido da história é aquele que atribuimos a ela, e que se trata precisamente de "dar-lhe um" sentido. Pois, qualquer que ele seja, só aparecerá a partir desta condição peculiar enunciada como "o homem é aquilo que ele se torna". Como consequência, não se pode dizer que a história é "algo" que está diante de nós para ser apreendido conceitualmente. Se a história é inseparável dos homens que a fazem, a sua compreensão também só pode acontecer por via da ação histórica. Isso reforça a inutilidade de se perguntar o que é a história, qual o seu sentido ou qual a sua finalidade antes de haver experiência histórica, pois só existe história quando existe ação histórica. Antes disso, nada há para compreender, nada há por cujo sentido perguntar. É por via da minha ação histórica, por via da ação histórica dos outros, e na medida em que estas ações se complementam ou se opõem, convergem ou combatem, é por meio destas situações que compreendo a história: situando-me nela a partir do meu projeto, contra o projeto daquele que se opõe a mim. Se há sentido e valor, eles nascem , nessa contradição. Se há valores que eventualmente transcendam a história, será também que se manifestarão. "E esta contradição é essencial ao homem: faz-se histórico em perseguição do eterno e descobre os valores universais na ação concreta que realiza tendo em vista um resultado particular."[2] A ação é por definição histórica; se há valores que governam a ação, ainda que sejam transcendentes somente se tornarão visíveis e discerníveis na ação histórica. De modo que, mesmo que nossa pretensão seja o transcendente e o universal, nunca os perseguiremos e os descobriremos se não passarmos pela história.

A partir dessas considerações é que se pode perguntar  o que significam afirmações do tipo: "o mundo é absurdo";  "o mundo é injusto".  São enunciados que remetem a critérios de julgamento. Posso afirmar que o mundo é injusto a partir de um certo critério de justiça. Onde se encontra este critério? Se ele possibilita um juízo categórico sobre a totalidade do mundo e da história,  nos termos de sentido ou da falta de sentido, tal critério só pode estar fora do mundo e da história. Mas o mundo e a história são o conjunto das ações humanas. O mundo humano é histórico, não natural. É um mundo de ações. Se o critério para julgá-lo está fora dele, qual é a substância deste critério? De que ele é feito, se não pode estar feito das mesmas ações que serviria para julgar? Em suma, se este critério não tem substância histórica, então é vazio. O juízo consistiria então em "comparar um mundo sem justiça a uma Justiça sem conteúdo".  Esta comparação é vã, pois a afirmação de uma justiça a-histórica não tornará mais justas as ações  históricas. A Justiça não é uma categoria que sintetize conteúdos empíricos. Ela existe ou não existe em cada ação, e por isso é em cada ação que ela tem de ser descoberta. Esta descoberta se confunde com o um esforço ético desenvolvido nas ações particulares para que sejam justas. É por via deste propósito, modesto e sem garantia de segurança, que se pode perseguir a justiça e pretender instaurá-la no mundo como valor universal. O universal que é apenas afirmado e que não se manifesta, é idéia abstrata.

O que Sartre quer deixar claro para Camus é que a única maneira de encontrar um sentido para a história é participando da construção deste sentido, e isso somente é possível no plano da ação. Sem dúvida, é preciso que a história tenha um sentido: nós "estamos metidos nela até  os cabelos", não podemos nos desvencilhar dessa condição e, por isso mesmo, é preciso dar um sentido à história, para não sermos submergidos pelo caos e pelo absurdo. A única maneira de construir este sentido é a ação concreta.  Quando o colonizado se revolta contra o colonizador, quando o trabalhador das minas se insurge contra as suas condições de trabalho e de vida, a justiça está em jogo, sem que essas reações passem a existir a partir de valores transcendentes, mesmo se considerarmos apenas a transcendência horizontal imanente à história. O colonizado e o trabalhador das minas não agem tendo em vista a História.  Reivindicam um resultado concreto e não o fazem em nome do valor transcendente da Justiça. Portanto a justiça que anima estas ações foi descoberta na injustiça concretamente vivida, e se se passar disso a algum valor transcendente, terá sido igualmente por via da situação concreta. Ora, aquele que já definiu o mundo como injusto, independentemente das ações e situações que o tornam tal, também já desistiu de torná-lo mais justo. Renuncia aos fins dos indivíduos e dos grupos na história, por entender que a própria história não tem finalidade. Não compreende  a relação que existe entre fins humanos da história e história de seres humanos, porque se acha na posição de olhar a história humana de fora, como olharíamos a história das abelhas e das formigas, julgando talvez canhestra e pouco razoável a maneira como agem. A história é o processo humano de realização de fins humanos. Entender que exista nela alguma lógica ou necessidade independente das ações humanas é recair no idealismo hegeliano, é antepor a lógica ou a racionalidade histórica às ações que as manifestam.  Por isso, talvez não seja humano exigir da história a absoluta transparência, impossível para a condição finita dos agentes históricos. É importante ressaltar, e isto tem um alcance maior do que a resposta de Sartre a Camus, que a história é humana, o seu movimento de realização só pode ser compreendido no contexto humano e o seu sentido nunca ultrapassará a dimensão humana. A peculiaridade do homem como ser histórico é absolutamente irredutível e disso depende a compreensão de todos os aspectos da existência.

É reafirmando essa mesma linha de pensamento que Sartre irá interferir no debate promovido pelo Centre d'Études et Recherches Marxistes acerca da possibilidade de uma dialética da natureza, ou da possibilidade de fazer do marxismo uma "filosofia completa", que contribua para elucidar não apenas as questões da História mas também das ciências  naturais. Sartre construirá sua questão em torno desta dificuldade: temos, no estado atual do conhecimento, condições de afirmar categoricamente uma dialética da natureza e conferir-lhe estatuto igual ao já conquistado pela dialética da história?  Trata-se da controvérsia em torno da legitimidade do materialismo dialético.

Para examinar a questão, Sartre estabelecerá, em primeiro lugar, a especificidade do materialismo histórico. São seus elementos: um conhecimento que se desenvolve dialeticamente; um "objeto" considerado em si mesmo como dialético, a história;  um conhecimento que na sua própria realidade está dialeticamente condicionado pela história. Tais elementos podem ser assim resumidos: "(...) a descoberta do sentido dialético da história é em si mesma dialeticamente condicionada por toda a história."[3] Esta relação estreita, verdadeira inseparabilidade, entre a história e o conhecimento histórico oferece a oportunidade de superar o positivismo histórico, variante do mecanicismo científico, que via na história um agregado de fatos, ou melhor, que entendia o conhecimento histórico como um procedimento agregador de fatos espalhados no devir. Quando sabemos que a história é processo, e que o conhecimento deste processo deve ocorrer também como processo, verificamos que há, entre a história e o conhecimento histórico, uma relação que Sartre chama de "translucidez": "a dialética liga indissoluvelmente o pensamento do ser e o ser do pensamento". Esta ligação indissolúvel caracteriza o que se entende por inteligibilidade histórica. A dialética está para a história assim como a inteligibilidade analítica está para a matemática. Isto quer dizer que a mesma relação de transparência que existe entre a inteligência analítica e a matemática existe também entre a dialética e a história, razão pela qual a história se torna inteligível apenas quando abordada dialeticamente. O que nos convida a perceber a diferença irredutível, a oposição mesmo, entre inteligibilidade analítica e inteligibilidade dialética: aquela procede por separação e integração; esta pressupõe necessariamente a totalidade do fenômeno. O que distingue a dialética, portanto, é a inseparabilidade, no conhecimento, entre fenômeno e totalidade, o que quer dizer que ela "apreende a realidade histórica como totalização."  Que a categoria de totalidade esteja presente num conhecimento que se ordena pela superação de diferenças consideradas como momentos opostos de engendramento do todo talvez não seja uma afirmação absolutamente original. Mas Sartre insiste nela como meio de diferenciar a realidade histórica da natureza. Hegel começou pela aplicação da dialética ao conhecimento de fenômenos históricos porque desejava integrar todo conhecimento histórico numa vasta unidade gerada pela identidade dialética. Certamente esta pretensão é sinal de idealismo; mas a tentativa de fundar a dialética da história na dialética da natureza é um idealismo ainda mais forte, posto que derivado da pura lógica das estruturas e da sua sequência.

É importante assinalar que a anterioridade e maior abrangência da dialética da natureza, pretendidas por Hegel, constitui idealismo porque faz da natureza o fundamento da história,  o que é apenas uma pressuposição lógico-estrutural admitida como realidade. Na verdade, se faço nascer a dialética histórica da dialética da natureza é porque pressuponho que o homem, agente da história, é primeiramente um ser natural e depois, por acréscimo, um ser histórico. Assim a dialética da natureza seria mais abrangente, pois conteria em princípio a dialética histórica, que dela se destacaria ao mesmo tempo em que a consciência histórica. Se admitirmos esse raciocínio, a dialética histórica não poderá trabalhar com  totalidades, o que no entanto é, para Sartre, sua característica essencial. Ela estaria subordinada ao monismo do ser, e a história seria uma espécie de atributo expressivo deste monismo, ao qual corresponde, epistemologicamente, o pressuposto da unidade do saber. "Segundo alguns marxistas contemporâneos, a unidade do saber se exprime no monismo do ser. Ela exige que a própria essência utilize o método dialético, e que o objeto - ou físico, ou químico, ou orgânico - das ciências seja em si mesmo dialético."[4]  Em nome desta unidade do saber, e também, acrescente-se, da prerrogativa que o marxismo concede ao materialismo - e que mereceu, da parte de Sartre, um exame crítico em outro texto- considera-se que o homem é um ser ancorado na natureza, um ser natural. Restaria verificar o modo de presença da  natureza no ser do homem. Segundo Sartre, já Marx havia notado a peculiariedade de que a natureza nunca se encontra no homem naquela modalidade a que se poderia denominar  em si, isto é, tal como ela se encontra numa planta ou num animal. O homem permanece incorporado à natureza na medida em que ele a incorpora nos seus processos especificamente humanos, por ex., instituição e produção. É esta incorporação humana que confere função  específica  às forças da natureza, à ação dos processos naturais, sendo que a especificidade da atuação da natureza no universo humano é devida a mediações que os demais seres não realizam. Por isso, dizer que o homem é um ser natural sem  mencionar tais mediações envolve o risco de uma interpretação mecanicista da relação entre o homem e a natureza. Jamais um fato humano pode ser explicado exclusivamente por fatores naturais, posto que estes somente agem sobre o homem por intermédio do próprio homem. "Assim a tese pessimista e idealista que faz do homem um simples produto natural é combatida pela tese histórica e dialética que faz com que a natureza aja sobre a sociedade somente por via da própria sociedade."[5] Isto não quer dizer que o homem não sofra influências determinantes do contexto natural e de sua própria constituição biológica. Mas, como o homem não pode ser assimilado à pura exterioridade do fato natural, a história apresenta-se como instância originária de compreensão. Pode-se dizer, neste sentido, que a compreensão natural, inclusive biológica, do ser humano, é algo que se segue à compreensão histórica. E certamente esta superioridade da compreensão histórica se deve à possibilidade de totalização. O indivíduo é uma totalidade que se apreende como tal ao inserir-se numa outra totalidade que é a histórica, que o supera e que confere sentido àquela primeira instância de totalização. Se entendermos este processo como modelo de conhecimento, veremos que ele não se aplica a nenhuma outra realidade além do homem. A diferença, que provavelmente sempre existirá, qualquer que seja o nível de progresso da ciência, é que esta totalização, que envolve elementos de estrutura e elementos de processo, é engendrada, no homem, pelo próprio homem. Podemos até encontrar algo semelhante na física atômica,  e os físicos se vêm obrigados a apelar para as noções de estrutura, totalidade, diferença entre elementos e totalidade, sistema de relações, etc.. Mas chamamos a estes sistemas de totalidade não porque eles se tenham engendrado a si próprios desta maneira, mas porque os reconstituímos assim, a partir de procedimentos experimentais. Neste caso, diz Sartre, a totalidade é muito mais "sofrida" (subie) pelo sistema do que engendrada por ele. Esta impossibilidade de um sistema físico engendrar sua própria totalidade é que configura sua exterioridade.

De maneira bem diferente,  a sociedade humana é uma totalidade que se percebe por dentro. "Nesse caso é que nós mesmos somos (enquanto formamos a sociedade) o todo concreto. E o somos na medida em que o produzimos. Assim a dialética se mostra como a compreensão da sociedade em interioridade no próprio movimento que a produz."[6] A sociedade historicamente constituída é o único sistema (estrutura e processo) que somos capazes de ver a partir de dentro. É por isso que os fatos históricos podem ser dialeticamente interpretados: porque não os vemos apenas a partir da exterioridade na qual se apresentariam à espera de nossos procedimentos agregadores (mecanicismo); mas os vemos também a partir da interioridade, isto é, vemos como se engendram uns aos outros e como formam sistema no interior da totalidade. Por isto já advertira Marx que as relações de produção formam uma totalidade, isto é, qualquer que seja o fato a interpretar, ele deve ser remetido a esta totalidade das relações de produção, no interior da qual  poderá ser explicado.  Portanto, se a compreensão dialética supõe o conhecimento interno a partir da totalidade, e não o agenciamento extrínseco de elementos na exterioridade, aí se encontra a peculiaridade da história e do conhecimento histórico, aí se encontra a diferença entre o homem e a natureza - a especificidade da história e a irredutibilidade da inteligibilidade dialética dos fatos históricos. Há portanto um risco de reducionismo quando se quer fazer da inteligibilidade histórica parte de uma pretendida compreensão dialética da natureza. Há aí o risco de diluir a diferença da história na uniformidade dos fatos naturais. O que significa a história das sociedades senão que elas se organizam e se reorganizam a partir do todo, e que as particularidades expressam o todo?  Para que haja dialética, diz Sartre, é preciso que as particularidades estejam dotadas de um movimento pelo qual expressem  o todo que compõem e ao qual se remetem. Não seria possível estabelecer este tipo de relação entre os fenômenos naturais e a natureza considerada como uma totalidade, pela simples razão de que a natureza não pode ser considerada como uma totalidade, mas sim como infinidade. Precisamente a abertura da infinidade impede que a consideremos como totalidade. A natureza, embora susceptível de ser sistematicamente conhecida, é em si mesma dispersa. A natureza é uma "estrutura sem história", já que a história existe quando a totalidade "se faz", isto é, se engendra historicamente. Por isso não há maneira de comparar o antagonismo das forças históricas com a oposição das forças naturais.

"O mundo do homem é aquele que nós fazemos e que nos faz, aquele em que fazemos de nós, a partir do que foi feito de nós, algo que refletirá e que fará os outros".[7] Esta frase difícil  parece ser a variante de outra mais conhecida: Não importa o que os outros  fazem de nós; importa o que fazemos com o que fazem de nós.  O que uma frase como esta exprime são relações de interioridade, para Sartre somente possíveis numa configuração histórica, ou histórico-social, cuja característica é precisamente propiciar tais relações. É claro que essa especificidade torna mais difícil compreender o homem. Seria mais fácil se houvesse uma continuidade entre ele e os seres puramente naturais. O sistema do universo seria um só e não haveria problema em afirmar o princípio de unidade do saber. Talvez seja este o propósito que anima os marxistas que querem estabelecer a dialética da natureza como instância geral e fundamental da dialética. Mas é preciso notar que por aí se corre o risco de naturalização do homem, de perda da singularidade do seu ser histórico e de perda da especificidade das relações propriamente sociais.

Isso nos ajuda também a entender porque, para Sartre, Camus, tendo recusado a história, teve de tornar-se um estranho entre os homens. Quando recuso a história, recuso todos os liames especificamente humanos com os meus semelhantes.

 


[1]SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, pg. 79. Trad. port., pg. 108.
[2] SARTRE, J.P. Respuesta a Albert Camus, pg. 79. Trad. port., pg. 108.
[3]SARTRE, J.P, GARAUDY, R., HYPPOLITE, J. , VIGIER, J.P. Marxisme et Existencialisme - Controverse sur la Dialetique, Plon, Paris, 1962., pg. 2. Trata-se da primeira intervenção de Sartre no debate. O texto não traz título.
[4] SARTRE, J.P. Marxisme et Existencialisme, pg. 8.
[5]SARTRE, J.P.  Marxisme et Existencialisme, pg. 9.
[6]SARTRE, J.P. Marxisme et Existencialisme, pg. 15.
[7]SARTRE, J.P. Marxisme et Existencialisme, pg. 23.

Autor:  Franklin Leopoldo e Silva