Górgias

             É possível considerar que Górgias prolonga as consequências que Protágoras havia tirado da impossibilidade de se chegar a uma verdade absoluta. Essa constatação havia levado Protágoras ao relativismo, isto é a uma espécie de equivalências das opiniões do ponto de vista do estatuto lógico, restando apenas o critério prático como fator de decisão. Górgias vai mais longe: entende que a impossibilidade de um critério absoluto não provocaria apenas a equivalência de todas as opiniões, mas tornaria impossível a formulação de qualquer uma delas. Isto significa que não apenas seria possível afirmar, acerca de qualquer coisa, duas opiniões contrárias, como pensava Protágoras; para Górgias, nenhuma afirmação pode ser feita, mesmo que a tomemos apenas como relativamente verdadeira. Se quisermos definir com um termo moderno a atitude de Górgias teremos que chamá-la de niilismo: a ausência completa de qualquer valor ou critério de fundamentação.

         É interessante notar em Górgias que, embora não admita a possibilidade de qualquer enunciado válido sobre o que quer que seja, ele procura fundamentar argumentativamente essa impossibilidade, partindo de uma refutação do pensamento eleático, isto é, da concepção da identidade entre ser e pensamento formulada primeiramente por Parmênides, embora, ao que tudo indique, Górgias se refira mais especificamente a um discípulo de Parmênides, Melisso. A fórmula de Parmênides – o ser é, o não-ser não é – indicava uma identificação absoluta entre ser e pensar, uma rigorosa unidade do ser, de modo que não seria possível qualquer predicação além da repetição de que o ser é, posto que qualquer qualificação do ser implicaria numa restrição que viria contrariar a unidade absoluta com que devemos pensá-lo. Górgias tentará utilizar o raciocínio de Parmênides contra o filósofo, mostrando que o próprio pensamento eleático, quando levado até o extremo de sua consequência, nos obrigaria a concluir o contrário do que Parmênides propunha. Esse propósito de Górgias faz com que o seu pensamento seja muito mais difícil de apreender do que o de Protágoras, devido à sutileza e complexidade da argumentação que terá de desenvolver, o que deriva da complexidade lógica dos próprios argumentos de Parmênides. Por essa razão, encontramos em Górgias uma retórica mais desenvolvida do que em Protágoras, e a sofisticação formal do seu raciocínio é bem maior.

            Górgias desenvolve três argumentos em torno das seguintes afirmações: Nada existe; mesmo que algo existisse, não poderíamos conhecê-lo; mesmo admitindo que pudéssemos conhecer alguma coisa, não poderíamos comunicar esse conhecimento aos outros. O objetivo implícito na sucessão dos argumentos é mostrar o caráter niilista que resulta de qualquer tentativa de conhecimento, e as consequências que daí se podem tirar para a aplicação do conhecimento aos vários aspectos da vida.

1. Nada existe. 

O argumento se baseia no contraponto entre as concepções acerca do ser, sobretudo na oposição entre unidade e multiplicidade. Os filósofos que concebem o ser a partir da multiplicidade provam a sua teoria por meio de argumentos formalmente corretos. O mesmo fazem os filósofos que defendem a unidade do ser. Na contraposição entre os argumentos, deve-se notar que um anula o outro, na medida em que o defensor da multiplicidade mostra que seria contraditório negar a variedade e a combinação que estão na geração das coisas; e o defensor da unidade por sua vez demonstra que a única forma de pensar coerentemente o ser é pensá-lo como uno e absoluto, caso contrário teríamos de pensá-lo associado ao não-ser. Ora, se tomarmos ambas as demonstrações naquilo que negam, somos obrigados a aceitar que ambas as possibilidades foram negadas: tanto que o ser seja múltiplo quanto que seja uno. E se juntamos essas duas negações, o que acaba por ser negada é a própria possibilidade de qualquer afirmação sobre o ser. Para quem observa, sem tomar partido imediatamente, a controvérsia em torno do ser, o que fica demonstrado é que o objeto que ambas as partes pretendem conhecer não pode ser apreendido a partir de qualquer das pressuposições estabelecidas. Ambas se anulam mutuamente e ao se anularem anulam a possibilidade do conhecimento. Daí Górgias sentir-se autorizado a dizer: se está demonstrado que o ser não é nem uno nem múltiplo, e se essas são as duas alternativas de que se dispunha, então deve-se concluir que o ser não é, ou que nada existe. Observe-se que Górgias procura utilizar o rigor do pensamento de Parmênides contra o próprio Parmênides, fazendo com que aquilo mesmo que possibilitou a afirmação do pensamento eleático como lógico e consequente seja também aquilo que deve mostrar a sua inviabilidade. Deve-se notar ainda que o argumento de Górgias situa-se no nível do pensamento abstrato, como o de Parmênides. O fato de que a realidade empírica parece fazer pender a balança para o lado da multiplicidade não é levado em conta, pois Górgias parte do princípio de que os filósofos desejam estabelecer a verdade e não apenas confirmar a aparência

2.  Mesmo que algo existisse, não seria possível conhecê-lo.

Também neste ponto Górgias toma como ponto de partida o raciocínio de Parmênides, mas para invertê-lo e produzir um resultado contrário ao do filósofo. Parmênides havia estabelecido a identidade entre ser e pensar: pensamento é sempre pensamento do ser. Do que se segue que o não-ser é, mais do que inexprimível, impensável. Para inverter essa linha de argumentação, Górgias procura mostrar que nem tudo que é pensado corresponde ao ser, pois existem conteúdos de pensamento sem realidades existentes que lhes correspondam. Para ele, isso é evidente, bastando que atentemos para algumas possibilidades de nosso pensamento. Nada nos impede de pensar, por ex., num homem que voa, ou que carros andem sobre o mar, o que manifestamente não ocorre na realidade. Isso quer dizer que pensamos coisas que não existem. Ora, se houvesse a identificação proposta por Parmênides entre pensamento e ser, todos os conteúdos de pensamento teriam que corresponder à realidades. Como se pode mostrar que pelo menos alguns não correspondem, há de se convir que podemos pensar o não-ser, ao contrário do que afirmava Parmênides. A partir daí, porque devemos afirmar que o ser é sempre pensado de preferência a afirmar que o ser nunca é pensado? Pois se é verdade que existem não existentes pensados, também é verdade que o ser não é pensado. Estes enunciados são ao mesmo tempo simétricos e contrários aos de Parmênides. Portanto Górgias  entende que pode afirmar a separação entre ser e pensamento, assim como Parmênides afirmava a identificação entre eles. Parmênides afirmava que pensamento e ser são inseparáveis porque só se pode pensar o ser; a partir da constatação de que se pode pensar o não-ser, pode-se também afirmar a separação entre ser e pensamento. Devemos observar que Górgias procura imitar a lógica de Parmênides, isto é, a identificação ou a separação devem ser absolutas. Não lhe ocorre, por ex., afirmar que posso tanto pensar coisas que existem quanto coisas que não existem. A simples possibilidade de poder pensar uma só coisa que não exista basta para invalidar a identificação entre pensamento e ser, e permite a Górgias afirmar, de modo absoluto, que o ser não é pensado. Daí a impossibilidade de se conhecer qualquer coisa, mesmo se eventualmente qualquer coisa existisse.

3. Mesmo que algo fosse conhecido (ou pensável) não poderia ser comunicado. 

O argumento de Górgias consiste em questionar a possibilidade de passar da palavra, enquanto significante, ao significado, de modo que a palavra remeta verdadeiramente à coisa de que se está falando. Para Górgias, a diferença entre a palavra e a coisa que ela pretensamente significa impede que possamos passar validamente das palavras às coisas. Uma coisa é ver; outra é exprimir o que se viu por intermédio de uma palavra. Se vejo algo e o expresso a outro por meio de uma palavra, por que a audição da palavra faria com que esse outro conhecesse aquilo que eu vi, se ele mesmo não viu? O que garante que a palavra torna manifesta a alguém uma experiência que ele no entanto não teve? Com efeito, uma coisa é a visão ou o objeto visto; outra coisa é a audição e a palavra ouvida. Quando falo, digo uma palavra. A experiência de quem me ouve consiste na audição desta palavra. Como ele poderia, apenas por meio desta experiência específica, entender e vir a conhecer outros elementos, como por exemplo, a forma e a cor do objeto acerca do qual estou lhe falando, se tais elementos estão por definição ausentes da experiência presente, apenas auditiva? Como ele poderia figurar pelo pensamento uma cor ao ouvir um som, se a cor é objeto de visão e o som é objeto de audição? Observe-se que Górgias não confere ao som significante da palavra nenhum privilégio sobre o som em geral. Não lhe ocorre, como poderia, para nós, parecer óbvio, que o que importa na palavra é menos o som, no sentido físico, do que o significado que tal som transmite, de modo que, quando ouvimos o som, é como se ouvíssemos o significado. Ele contesta este privilégio da palavra como som articulado. O seu argumento ficaria talvez mais claro se o invertêssemos: poderia alguém entender um som simplesmente à vista de uma cor? Ao responder negativamente a esta pergunta, estamos levando em conta que a palavra é um som especial, e que a sua percepção traz mais elementos do que o especificamente auditivo. Mas Górgias contesta a legitimidade desta distinção.

Além disso, não aceita também o argumento de que o significado possa ser transmitido da mente de quem fala para a mente de quem ouve, de tal modo a fazer com que este figure pelo pensamento aquilo em que o outro estaria por sua vez pensando. Diz ele que não seria possível que a mesma realidade estivesse ao mesmo tempo em dois sujeitos, porque então não seria uma, mas duas. Ainda que admitíssemos que isso pudesse acontecer, isto é, que o outro pudesse figurar na sua mente o objeto que exprimo pela palavra, nada asseguraria que o que eu penso e o que ele pensa fossem idênticos, já que somos diferentes e nossas mentes são diferentes. Em nós mesmos experimentamos que as percepções diferem num único sujeito, como ocorre com as percepções da vista e do som, ou mesmo com percepções passadas e presentes. Maior deveria ser a diferença em dois sujeitos distintos. Esta é a razão pela qual, ainda que fosse possível conhecer alguma coisa, ninguém poderia manifestar esse conhecimento a outro.A separação que já existia entre ser e pensamento, torna-se agora separação entre ser, pensamento e palavra.  O problema que é colocado por Górgias neste ponto constituirá uma das preocupações constantes da filosofia e antecipa uma das questões mais relevantes da filosofia moderna: a intersubjetividade. É possível a comunicação entre as consciências e, e,caso positivo, o que a torna possível? Como a linguagem exerce uma mediação entre os sujeitos fazendo com que a comunicação de pensamentos seja possível por meio de sinais? Qual o grau de semelhança que se estabelece entre os pensamentos quando os exprimimos por meio de signos convencionais?

            Depois de ter construído  os argumentos que negam o ser, a verdade, o pensamento como portador do ser e da verdade e a palavra como significação do pensamento, o niilismo de Górgias parece desembocar numa paralisação completa do pensamento e da ação. No entanto, tal como em Protágoras, há em Górgias uma preocupação pragmática que exige uma saída para esse impasse. E, também como em Protágoras, essa necessidade deriva de estar a atividade do sofista voltada para a vida da cidade, para o universo ético-político e para a pedagogia dos cidadãos. Em Protágoras a solução foi uma combinação entre o pragmatismo e o relativismo, fazendo com que a equivalência das opiniões, do ponto de vista do teor de verdade, se resolvesse por uma escolha baseada em critérios utilitaristas. Mas em Protágoras isso era possível porque ele aceitava as opiniões como verdadeiras para aqueles que as professassem, e esta base de verdade equivalente é que podia permitir a decisão pragmática. Górgias não aceita a validade das opiniões com base na relatividade de todas elas. Para ele, todas as opiniões são falsas: esta é a diferença entre o relativismo e o niilismo.

            Para que a consequência desse niilismo não repercuta na vida ético-política, ou paralisando-a inteiramente, ou transformando-a num caos pela ausência total de critérios, Górgias vai apelar algo que os comentadores denominaram ética de situação. O poder do logos humano, isto é, a teoria moldada no pensamento e na linguagem não é suficiente para se chegar à verdade. O pensamento humano é controverso, isto é, incapaz de verdade e capaz de duplas posições que se anulam mutuamente. Mas esse mesmo logos, se renuncia às pretensões absolutas e se contenta em exercer-se circunstancialmente, no limite de experiências humanas restritas, pode produzir soluções, igualmente circunstanciais e restritas, que no entanto possam orientar a conduta dentro desses limites. Isto é, o homem pode deliberar nos limites de cada situação e aí encontrar talvez formas, sempre provisórias e variáveis, de encaminhar sua vida, e a vida da cidade. Guiando-se por critérios que a experiência já validou, aceitando aquilo que geralmente se tem mostrado melhor, levando em conta a diversidade das circunstâncias, é possível alguma orientação, para a qual Górgias recomenda apoiar-se largamente nas opiniões correntes, não porque sejam justas ou verdadeiras, mas porque já foram em geral testadas e comprovadas na experiência concreta.

            De modo que, no que respeita à atividade pedagógica do sofista, Górgias tem que admitir, por coerência, que não tem muito a ensinar. Para ele seria ridículo pretender ensinar a virtude ou tentar abordar por via do saber a vida ético-política. Mas uma coisa se pode ensinar, e ainda de forma mais intensa do que Protágoras, porque agora isso é realmente a única coisa que se pode ensinar: a retórica como a arte da persuasão. Desvinculada do ser, da verdade e até mesmo da opinião, a palavra adquire uma autonomia quase ilimitada. Górgias se vangloriava de poder persuadir qualquer um, a respeito de qualquer assunto, independente de dominar tecnicamente a matéria. A palavra pode sugerir, persuadir e fazer crer em qualquer coisa. Por isso é necessário saber explorar a fundo os recursos oratórios, principalmente com finalidades políticas, para mover as paixões humanas na direção pretendida. A palavra confere poder àquele que a utiliza com eficiência e a partir de uma percepção adequada de cada situação. 


Autor:  Franklin Leopoldo e Silva