Mito e razão na "Odisséia"

          O mundo da epopéia é, por muitos aspectos, um mundo encantado, isto é, aquele em que o natural e o sobrenatural se misturam. Os deuses andam entre os homens; as forças naturais, não dominadas, agridem ou auxiliam os trabalhos humanos; as visões, os oráculos, as predições, as advinhações estão constantemente presentes no cotidiano; é um mundo povoado de semi-deuses, de gênios, de feiticeiras, e as artes mágicas interferem nas decisões e ações dos homens; descendentes de deuses habitam o mundo, prontos a ajudar ou a prejudicar os humanos. Estes não podem evitar a relação contínua com seres sobrenaturais ou intermediários entre a natureza e a sobrenatureza, e precisam contar com eles nos seus empreendimentos, ou então evitar de alguma forma que essas forças os prejudiquem. Essa relação é sempre instável, porque os critérios pelos quais os deuses e as criaturas sobrenaturais pautam sua conduta não é inteiramente accessível à compreensão humana. A sabedoria consiste em grande parte numa espécie de cautela no trato com o sobrenatural, pois a catástrofe pode ser o resultado da irritação dos deuses e dos semi-deuses, mesmo que a causa seja a inadvertência humana e não o desejo deliberado de desafiar as divindades. A posição do homem nesse mundo é instável e delicada; ele tem que manter um equilíbrio difícil, e nem sempre o discernimento de que dispõe é suficiente.

            A Odisséia está quase inteiramente construída sobre essa relação entre o homem e o sobre-humano. As aventuras de Ulisses caracterizam-se quase sempre pelo enfrentamento de seres dotados de um poder que supera largamente as forças humanas,  como para deixar clara a desproporção entre o humano e as diversas instâncias do divino com as quais o homem tem necessariamente que se relacionar. Quase todas essas potências sobrenaturais são hostis, e é preciso derrotá-las ou transformá-las em aliados. É exatamente aí que surge o problema. Como o homem, carente de força e de poder quando comparado a esses seres sobrenaturais, pode agir para evitar a sua aniquilação? Na Ilíada os sacrifícios aparecem como a estratégia adequada para despertar a simpatia dos deuses ou ao menos aplacar sua  cólera. Mas isso é possível porque a Ilíada não está povoada desses seres que são como que divindades menores, quase desterradas de uma condição originalmente divina, e esse estado intermediário, que faz com que não sejam nem inteiramente deuses nem inteiramente homens, desperta neles uma hostilidade aos humanos, que não pode ser facilmente aplacada. Os deuses da Ilíada são felizes porque podem gozar completamente a condição divina. Num certo sentido, é mais fácil para os homens relacionarem-se com eles. Na Odisséia, existem seres sobrenaturais, como Circe, Calipso e o ciclope, que, apesar de imortais e descendentes de deuses, não usufruem completamente a condição divina, estão ainda subordinados à vontade dos deuses, embora de maneira diferente dos humanos. Não se pode acalmá-los apenas por meio de sacrifícios e de preces, porque têm necessidades humanas que não seriam satisfeitas dessa forma. A condição semi-divina é também a condição semi-humana: essa duplicidade complica a relação que se pode ter com eles, o que torna a tarefa de Ulisses, na Odisséia, por muitos aspectos mais difícil do que a dos heróis da Ilíada, no que concerne ao trato com o sobrenatural.

            Mas o que a Odisséia tem de específico quanto a essa questão é a maneira pela qual Ulisses vai enfrentar o sobrenatural, e as estratégias que ele monta para superar os perigos que encontra. Esta maneira específica relaciona-se com aquilo que distingue Ulisses: ele não é somente um grande guerreiro, que possui força e coragem em graus elevados. Ele é também um homem astucioso. E se esta qualidade sempre esteve presente, e já se manifestava na Ilíada, na Odisséia ele se mostra sobretudo astucioso. E não é difícil de entender porque, neste poema, a astúcia tem que destacar-se acima das outras virtudes. É que para vencer as dificuldades que se apresentam na viagem de volta à casa, Ulisses não pode ser apenas um grande guerreiro, pois esses perigos não estão todos na esfera do humano, e não são do  tipo daqueles que o homem poderia enfrentar somente por suas próprias forças. Na verdade, esses perigos são tais que, diante deles, o homem que dispõe apenas de força e coragem já estaria de antemão derrotado. Pois as virtudes especificamente guerreiras não bastam para vencer seres que dispõem de poderes sobre-humanos. O que Ulisses percebe desde logo, e isso é decisivo para que saia vitorioso, é que, justamente, não é o caso de combatê-los propriamente. Isso demonstraria força e coragem, mas não resultaria no êxito. Não seria eficaz. O que distingue Ulisses como homem astucioso, além de forte e corajoso, é a sua percepção de que são necessárias outras armas, e que estas não são as armas do combate propriamente dito, mas as armas do intelecto. A astúcia representa em Ulisses a tomada de consciência, pelo homem, de que ele pode vencer a natureza e o sobrenatural por via de uma força especificamente humana, que não se mede fisicamente, e que seria o poder de raciocinar e de calcular as possibilidades, de modo a fazer com que a desvantagem que ele possui inevitavelmente de início possa se transformar justamente no fator que lhe permitirá superar a vantagem do inimigo. Neste sentido, a Odisséia foi analisada por Adorno e Horkheimer como a alegoria da supremacia da razão humana sobre as forças naturais e até mesmo sobrenaturais. A viagem de Ulisses e os perigos que ele enfrenta representariam,  nesse caso,  a constituição da racionalidade como o instrumento privilegiado pelo qual o homem vai triunfar sobre o mundo encantado. A astúcia de Ulisses seria a primeira figura da razão e do seu papel de dominar o irracional, ou aquilo que em princípio se lhe opõe. E as vitórias de Ulisses podem ser entendidas, alegoricamente, como a demonstração de que a razão é capaz de superar todos os obstáculos e impor-se como o único critério de relação com o mundo, critério que mostra ao mesmo tempo a supremacia da razão.

            O primeiro momento em que isso aparece na Odisséia é no canto XII, episódio das sereias. O navio deve passar por um trecho em que o canto das sereias perturba por tal forma os marinheiros que estes não conseguem  resistir ao desejo de aproximar-se do local do canto, o que faz com que os navios naufraguem nos escolhos. Circe preveniu Ulisses desse perigo: aquele que desfrutar da extraordinária beleza do canto fatalmente será levado à morte. A prudência manda, pois, que se passe por este local guardando uma distância tal que o canto não possa ser ouvido. Mas Ulisses deseja ouvir o canto e ao mesmo tempo salvar-se. Ele quer conhecer o canto, satisfazer uma curiosidade que é ao mesmo tempo racional e afetiva sem se dobrar à fatalidade,  isto é, sem conformar-se ao fato de que a felicidade e o prazer custam aos mortais a própria vida. Ele fará então com que os seus marinheiros o amarrem ao mastro e que eles mesmos vedem os ouvidos com cera, ao mesmo tempo em que deverão remar com todas as forças para atravessar o mais rapidamente possível o trecho de perigo. Dessa maneira, Ulisses ouve o canto: como não poderia deixar de ser, o canto exerce o seu fascínio mágico e Ulisses deseja desesperadamente ir ao encontro das sereias. Grita aos marinheiros que o desamarrem, mas estes, com os ouvidos tampados e concentrados em remar fortemente, não podem atender ao seu pedido. Com  isso Ulisses torna-se o primeiro homem a ouvir o canto e não morrer.

            Em termos de representação alegórica este episódio mostraria a vitória da astúcia, isto é da razão, sobre o encantamento das forças sobrenaturais. É preciso notar que o estratagema de Ulisses repousa sobre a eficácia da razão. Ele não pensa em enfrentar o perigo, confiando, por exemplo, em que a sua força e pertinácia o livrariam do encantamento. Pensa num estratagema, isto é, num cálculo racional  que neutralize a inevitabilidade da derrota, e isto ele o faz a partir do reconhecimento da desproporção entre as suas próprias forças e a força do encantamento. O modo como sobrevive configura então uma vitória que no entanto é obtida a partir do reconhecimento da sua própria fraqueza, e da desigualdade manifesta entre ele e aquilo que tem de enfrentar. É uma vitória da qual não está ausente o paradoxo, porque é uma conquista que se deve em parte a uma renúncia. Ele não apenas renunciou ao enfrentamento direto das sereias como montou, para poder ouvir o canto e sobreviver, um estratagema no qual está incluída, ainda que simbolicamente, a sua redução à impotência. Amarrado ao mastro, ouve o canto, isto é, usufrui o prazer. Mas não pode fazê-lo completamente, porque isto implicaria em ir ao encontro das sereias, o que não ocorre porque está amarrado e seus compenhairos estão com os ouvidos tampados. É uma situação em que o prazer tem o custo do sofrimento.  Mas também é uma situação que foi, em todos os seus detalhes, calculada pelo próprio Ulisses. Os seus companheiros estão com os ouvidos tapados para não ouvir o canto das sereias  e  para não ouvir os gritos de Ulisses, ordenando-lhes que o libertem.  Ele é o artífice do seu gozo e do seu sofrimento, e nisso há uma espécie de cálculo racional  em que foram aplicados os pesos respectivos do prazer e da dor, do conhecimento e da preservação.

             Assim, Ulisses sobrevive porque monta uma relação com o mundo em que o envolvimento e o risco consequente são substituídos por uma visão externa, isto é, a razão apropria-se como espectadora de algo que antes somente se poderia possuir pelo empenho direto da própria vida. O que se pode perceber aí é o antecedente daquilo que a filosofia grega chamará depois de teoria e a filosofia cristã de contemplação. Em ambos os casos temos a constituição de um sujeito externo às coisas a aos acontecimentos, sendo que a separação aparece como mediação necessária da participação e do conhecimento. Ulisses participa do encantamento das sereias porque ouve o canto e reage ao seu apelo; mas não ao ponto de deixar de ser ele mesmo, Ulisses, e aniquilar-se na satisfação do desejo de identificação com a fonte deste chamamento encantado. Ele permanece de fora, separado, constituído como sujeito diante do mundo.

            Então, quando dizemos que Ulisses triunfa sobre as sereias, quer dizer, sobre o mundo encantado, é preciso também entender que ele o consegue às custas de introduzir na relação entre o sujeito e o mundo algo como um paradoxo. Ele participa do encantamento sem deixar-se encantar: ele conhece o encantamento. Graças à distância e à separação, este aparece para Ulisses como aquilo que mais tarde se chamará objeto, mas que já se insinua nessa relação que Ulisses inaugura.  Mais do que isso, sua maneira de participar do encantamento é a não participação, o afastamento, ainda que para isso tenha que refrear em si o desejo do encontro e da identificação. Ora, ao subtrair-se desta forma aos efeitos do mundo encantado, sem por isso deixar de conhecê-los e até certo ponto experimentá-los, Ulisses quebra o encanto do mundo, naturaliza o que antes era sobrenatural. As duas coisas têm de ser consideradas conjuntamente: a renúncia de Ulisses de se deixar encantar significa que anula em si uma parte de si mesmo, aquela que desejaria ir ao encontro das sereias; permanece aquela que quer apenas conhecer o canto das sereias. Este procedimento, por sua vez, faz do canto das sereias algo como um espetáculo que se dá para um sujeito,  um evento reposto na sua exterioridade e despojado de seu apelo vital. Esse domínio da razão sobre o mundo encantado antecipa a relação que no futuro a razão estabelecerá com o mito: a tentativa de incorporá-lo a si mesma, vendo no mito apenas uma explicação provisória que antecede a explicação racional do mundo. Ulisses será o primeiro que poderá falar realisticamente do canto das sereias, quando narrar aos outros o episódio. Poderá referir-se a ele como mais tarde o sujeito se referirá ao objeto.

            A astúcia de Ulisses é o triunfo da razão, mas pode-se ver que neste triunfo há alguma coisa de análogo ao logro. Ulisses escapa da relação fatal existente entre o canto e a morte porque, de certa forma, engana o sobrenatural. Ouve o canto de uma maneira tal que a relação fatal não se possa completar. Afirma a supremacia da razão humana mostrando que é possível escapar de uma situação na qual estaria  configurado que certo tipo de conhecimento e certo tipo de prazer só seriam accessíveis aos mortais se estes aceitassem pagar o preço de sua própria morte para obtê-los. O que é uma forma de dizer que isso deveria permanecer vedado aos mortais. A atitude de Ulisses antecipa que nada está vedado à razão. E a causa dessa extensão indefinida do poder racional é que a razão é capaz de organizar os meios de impor a sua supremacia, mesmo quando se trata de impô-la a elementos que a princípio se situam além da esfera do poder simplesmente humano. A astúcia da razão contorna assim a fragilidade originária do homem. O outro exemplo desta estratégia racional é o modo como Ulisses engana o gigante Polifemo, episódio no qual a astúcia aparece nitidamente como logro. Neste sentido, a Odisséia já contém, ainda que alegoricamente,  a morte do enigma como a contrapartida necessária do conhecimento. Assim como a esfinge morre ao ter seu enigma decifrado por Édipo, assim também as sereias deveriam desaparecer ao ter seu encantamento desfeito por Ulisses. Talvez isso não aconteça porque Ulisses é ainda uma antecipação alegórica do triunfo da razão. 


Autor:  Franklin Leopoldo e Silva