Freud

Biografia Freud:

É consenso entre os comentadores da obra de Sigmund Freud qualificar A interpretação dos sonhos como o texto inaugural da psicanálise. Publicada em 1900, traz como epígrafe uma frase extraída da Eneida, de Virgílio (VII, 312):  “Se não posso dobrar os Poderes Superiores, moverei as Regiões Infernais”. Proferida pela divindade semita Juno contra Enéas, fundador de Roma[1], essa frase transfere as ações de personagens mitológicos em mundos superiores e inferiores para o terreno psicológico: as moções pulsionais sexuais que ferem nossos ideais morais são submetidas à repressão e têm a sua entrada recusada na consciência (instância superior da alma). Este procedimento, contudo, é incapaz de lhes fazer desaparecer do psiquismo. Elas são enviadas para longe do olhar da consciência, onde se fazem ouvir pela agitação do inconsciente (instância anímica inferior). Freud separa, desse modo, o psiquismo em três diferentes regiões: a mais superficial, que percebe o mundo que nos rodeia e uma parcela de nossos pensamentos; a das profundezas, de onde brotam as moções de desejo em nosso psiquismo; e a que se coloca entre as duas regiões, responsável por selecionar e censurar os pensamentos que se opõem aos ideais superiores. As regiões a que Freud se refere são, como ele mesmo expressa em A interpretação dos sonhos, lugares ideias, que não se referem a nenhum local materialmente identificável no interior de nosso cérebro. A separação do psiquismo em três diferentes instâncias serve para ilustrar a sua solução acerca de um problema nada novo na história da filosofia, a saber: seria nossa alma inteiramente consciente e racional? Para Freud, a consciência e a razão se originam de uma região muito mais vasta e desconhecida, que a elas serve de fundamento. Os sonhos, assim como os sintomas psicopatológicos e as criações mitológicas (ou sonhos coletivos, segundo o autor) seriam momentos privilegiados para se observar as potências inconscientes sacudindo a consciência. Aparentemente absurdos, é através da interpretação psicanalítica que podem ser reconduzidos ao seu verdadeiro núcleo de sentido. Cada sonho, cada sintoma, revela-se como a realização disfarçada de desejo inconsciente. Disfarçada, pois para driblar a instância censora, as moções pulsionais assumem novas feições que os tornam irreconhecíveis. Encontrar o sentido do sonho e do sintoma é reconhecer as reais intenções do desejo, as quais estão muito além de suas desfigurações.

A ideia central de A interpretação dos sonhos percorre não apenas os textos publicados por volta de 1900, mas toda a obra freudiana. Ela pode ser encontrada em seus escritos clínicos (para citar alguns exemplos: nos casos Dora, Hans, Schreber, no Homem dos Lobos e no Homem dos Ratos), metapsicológicos (tais como Pulsões e destinos da pulsão, A repressão, O inconsciente), e sobre a cultura (dentre eles: Totem e tabu, O futuro de uma ilusão, O mal-estar na cultura e Moisés e a religião monoteísta). A epígrafe de seu livro fundador da psicanálise não expressa apenas “o mais importante da dinâmica do sonho” [2], mas também o próprio espírito que percorre as muitas décadas de investigação psicológica empreendida por Freud. Ela poderia, por assim dizer, ser a epígrafe de todo o conjunto de seus escritos psicanalíticos.

Nascido Sigismund Schlomo Freud em 6 de maio de 1856 em uma família judia em Freiberg (atual Příbor, República Tcheca), Sigmund Freud, nome que assume posteriormente[3], faleceu em Londres em 23 de setembro de 1939, em decorrência de um câncer na mandíbula e no palato. Mudou-se para Viena ainda criança, onde permaneceu até 1938, transferindo-se com alguns familiares para a Inglaterra devido à perseguição nazista. Cursou medicina na Universidade de Viena, onde dedicou sua formação ao estudo da neurologia. Após uma temporada de trabalho com Jean-Martin Charcot, em Paris, Freud passou a utilizar o método hipnótico no tratamento das doenças nervosas, sem obter muito sucesso. Do fracasso do tratamento com a hipnose tem origem o método analítico exposto em A interpretação dos sonhos. Por essa nova via, Freud chega a uma de suas mais famosas e difundidas contribuições ao tratamento psicológico: o Complexo de Édipo. Autor de uma vasta obra, Freud escreveu e publicou suas ideias até o fim de seus dias. A edição de suas obras completas abrange os escritos compreendidos entre 1886 e 1939, e está dividida, na edição brasileira, em 24 volumes.

 


Para saber mais:

FREUD, S. Gesammelte Werke. 18 volumes. Frankfurt am Main: Fischer Taschenburch Verlag, 1999.

______. Obras completas. 24 volumes. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.

______. A interpretação dos sonhos. 2v. Porto Alegre: L&PM, 2012.

______. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2010.

______. O Mal-estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010.

______. Psicologia das massas e análise do eu. Porto Alegre: L&PM, 2013.

GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

MONZANI, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.

PRADO Jr., B. (Org.) Filosofia da Psicanálise. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.


[1] Cf. SCHORSKE, C. E. Fin-de-siècle Viena. Donnelley & Sons Company: Indiana, 1981, p. 200.
[2] FREUD, S. La interpretación de los sueños. In: Obras completas. Vol. V. Buenos Aires: Amorrortu, 2006, p. 597 (nota).
[3] Freud opta por adotar o nome Sigmund ao invés de Sigismund já na faculdade, por acreditar ser um nome mais germânico, derivado de Sieg (vitória, em alemão), mais curto e de melhor sonoridade. Alguns comentadores afirmam que a escolha de Freud pode ser uma reação ao aumento do sentimento antissemita na década de 1860 e um modo de quebrar com suas raízes judaicas do leste europeu, enquanto outros sustentam que seria uma maneira de mesclar a situação dos judeus assimilados à cultura austro-húngara (refletida na adoção do novo nome) e as antigas tradições judaicas (presentes em Schlomo [Salomão], nome hebraico que lhe foi dado em homenagem ao seu avô paterno). Cf. GOLDSTEIN, B. Reinscribing Moses. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1992, p. 180.

Autoria: Ana Carolina Soliva Soria